O avião havia decolado há duas horas quando INXS começou a cantar “Need You Tonight” nos ouvidos de Yagami Sato. Ele nem gostava muito de INXS, sempre achou ultrapassado e de mau gosto, mas o iPhone ficou como estava — qualquer coisa seria melhor que ouvir novas reclamações de sua nova esposa.
Lisa continuava calada, o osso da mandíbula pulsando, se ela não fosse tão bonita estaria feia, de tão irritada.
INXS terminou de cantar, e antes que Korn começasse a se lamentar Yagami se livrou dos fones.
— Vai ficar com essa cara a viagem inteira?
— Não. Prometo voltar ao normal assim que você acabar com nossa Lua de Mel.
Yagami bufou e respirou fundo, exercitando toda a paciência oriental presente em seu DNA.
O resultado da brincadeira era para ser um segredo, pelo menos até que eles chegassem ao hotel e dormissem uma primeira noite em paz, mas todos sabiam que um Youtuber não sustenta um mistério maior que a cor original de seus cabelos. O de Yagami, por exemplo, tinha a cor da ferrugem. Mas já tinha sido amarelo, roxo e azul. E no caso de Yagami, a dúvida sequer era tão grande, afinal, japoneses geralmente tem cabelos pretos.
O grande segredo que Lisa descobriu (descobriu não, mas foi avisada por sua irmã), é que passaria uma das noites de sua Lua de Mel em Aokigahara, mais conhecida pelo mundo dos malucos como Floresta dos Suicidas.
— Eu ainda não acredito.
— Lisa, olha só — Yagami estendeu o smartphone —, vai ser bom pra gente, para o nosso futuro.
Ela não queria olhar, mas como resistir a tela de um iPhone novinho?
— Isso aí tá certo? — ela perguntou quando o olho registrou o número de seguidores.
— Tá sim. Desde que soltaram a nota no G1, o número não para de subir. Mais de 230mil seguidores em menos de cinco horas? Isso é quase um milagre.
— Não, Yagami. Milagre foi eu ter concordado com essa ideia cretina.
Concordar seria outro exagero. O que aconteceu foi uma espécie de acordo pré-nupcial, literalmente pré-nupcial. Lisa iria passar a maldita noite na floresta e ganharia um carro novinho, em seu aniversário de vinte e dois anos, um lindo New Beetle cor-de-rosa. E Lisa também tinha sua dose de culpa, afinal, a pergunta não respondida que os colocou naquela cilada estranhamente popular foi sobre a primeira vez dela com Yagami — e Lisa estaria bem mais furiosa se o mundo inteiro soubesse que aconteceu na droga de um elevador.
— Pensa na gente. Nos nossos filhos. Você ainda quer ter filhos, não quer?
— Bobo — ela sorriu. Não foi um sorriso ensolarado, mas era calor suficiente para terminar a viagem. Os fones voltaram aos ouvidos e Yagami escolheu algo menos deprimente e ultrapassado que INXS e Korn para tocar (uma coletânea de trilhas sonoras de seriados japoneses dos anos 1970).
Banzai!
*
O consenso foi terminar o quanto antes, e foi Lisa quem assinou o decreto e disse: — Vamos fazer essa coisa doentia hoje mesmo e esquecer que esse dia existiu.
Foram mais de duas horas de estradas secundárias cuja beleza contrastava completamente com o destino final daquele passeio. Mares de cerejeiras, o pico celestial do monte Fuji; o sol entrando pelas frestas das folhas e brincando com os olhos surpresos dos viajantes.
Na chegada, apenas dois carros estacionados. O homem grisalho que os levou até lá explicou que o Subaru branco estava ali há alguns anos, e que provavelmente o dono havia se perdido na floresta, ou o deixado por lá. Lisa sentiu um arrepio tão forte que se abraçou ao marido. Ele a beijou ternamente na cabeça e pediu que se acalmasse. O segundo carro, Yagami conhecia, ele tinha uma foto do veículo em seu iPhone, era do rapaz que faria as filmagens.
— Cadê ele? — Lisa perguntou quando ficaram sozinhos, apenas com os sacos de dormir e as mochilas.
— Hideo vai aparecer. Quando a noite chegar, ele vai encontrar a gente pelo GPS.
— E essa droga funciona nesse lugar?
Yagami riu. Claro que Lisa também havia feito suas pesquisas.
Além dos numerosos casos de suicídios anuais, dos supostos demônios que vagavam entre as árvores, e da mata fechada que desnorteava os viajantes, Aokigahara, ou o Mar de Árvores, possuía um campo eletromagnético fortíssimo, que causava um efeito catastrófico sobre as bússolas comuns. Mas e quanto aos GPSs?
— O que a Apple faz sempre funciona — Yagami tornou a rir.
— Era assim quando o Steve Jobs era vivo, mas agora? Aquilo ali está virando uma lavanderia.
— Herege… — Yagami disse e seguiu na frente.
Foram cerca de cinquenta minutos nadando no Mar de Árvores, até que Lisa comentou:
— Tá ouvindo isso?
Yagami se deteve. — Os nossos passos?
Não, não eram os passos no tapete de folhas secas que incomodavam Lisa. Mas como uma garota criada na cidade poderia definir a ausência? O que a perturbava não era o barulho, mas aquele silêncio mortal. Nada de vento, nada de animais, mesmo o som dos passos sobre as folhas era diferente, era oco, como se estivesse incompleto, faltando alguma coisa.
Lisa sequer tentou explicar; preferiu chegar mais perto do marido. A claridade do dia já estava se anulando, a noite na floresta chegando um pouco mais rápido, como se nem mesmo a luz do sol se esforçasse para vencer a copa das árvores e chegar àquele chão maldito.
Nos próximos vinte metros, uma carteira abandonada. Em outros cinco, cordas desfiadas pelo tempo, em duas árvores. Mais dois, e algumas cartelas de comprimidos depositadas em pequenos altares feitos de pedra.
— Não me admira que alguém tente se matar em um lugar desses — ela disse.
— Isso é um desejo?
— Deus, não. Mas dá para pensar em alguma coisa nesse lugar que não seja na morte?
— Fica tranquila, eu nem trouxe uma corda. Por aqui eles costumam se enforcar ou morrer por envenenamento. Sabia que mais da metade dos enforcados se arrepende antes de morrer de vez?
— Você não pode saber disso.
— É… tem razão — Yagami parou de caminhar e colocou a mochila no chão.
— Nós vamos ficar aqui? Eu não quero ser chata, mas não tem espaço para gente dormir. E olha só para esse chão — ela chutou um punhado de folhas.
Em seguida, novos sons, vinham do fundo da floresta.
Uma silhueta masculina logo emergiu das árvores.
— Hideo. Já era hora — Yagami disse.
O homem começou a posicionar a câmera, um pouco apressado. Yagami continuou abaixado, procurando alguma coisa na mochila. Lisa alternando os olhares, parada, a abertura das pálpebras dobrando de tamanho.
— Você vai filmar nós dois o tempo todo? — ela perguntou de onde estava. Em seguida cruzou os braços e tentou se proteger da curiosidade do cinegrafista.
O rapaz continuou em silêncio, posicionou o rosto no visor da câmera e fez uma pequena luz vermelha se acender no aparelho. Yagami ainda procurando algo na mochila.
Lisa chegou mais perto do marido.
— Eu quero ir embora. Sei que concordei, mas não quero mais fazer isso.
Lisa se afastou depressa, e seria muito difícil dizer o que a assustou mais: o rosto mascarado de Yagami ou a faca empunhada em sua mão direita.
— O que significa isso? Que merda de brincadeira é essa?!
Ele deu um primeiro bote. Lisa conseguiu recuar e escapar.
— Isso está indo longe demais!
Mas quem foi longe foi a lâmina, dessa vez encontrando o alvo.
Lisa ainda pressionou a injúria, mas o sangue propulsado pelo pescoço já molhava folhas secas a uma distância de dois metros.
— Pegou? —Yagami perguntou, enrouquecendo a voz propositalmente. Hideo esticou o polegar e continuou filmando.
Lisa recuando e tropeçando. Os olhos buscando a explicação para aquela tragédia, para aquela insanidade. Yagami tinha gostos estranhos, mas um assassino? Era com esse homem que ela havia se casado?
Usando as mãos sobre a boca, Yagami pediu que o áudio fosse interrompido na gravação. O mundo não precisava saber o que viria a seguir.
— Eu gosto de você — ele disse a garota que perdia a vida sobre um punhado de raízes grossas. Abaixou-se próximo a ela.
— Existem demônios de verdade nessa floresta, Lisa, criaturas que têm sede de sangue; sede de vida. Muita gente acaba se entregando a eles em Aokigahara, matando a si mesmos. Também era o meu plano quando estive aqui pela primeira vez. Mas os demônios podem ser generosos. Uma vida a cada três anos; não é muita coisa. Você é minha terceira oferenda, minha terceira esposa. Se você conseguisse falar, com certeza ia me contrariar e dizer que ainda não fazem três anos que a Diana me deixou. Mas eu sou um youtuber, um produtor de conteúdo. Eu tenho pressa, Lisa. Vivemos em um mundo ocupado, todo mundo sabe disso.
Lisa tentou protestar. O que saiu dela foi um gorgolejar anfíbio.
— Não é pessoal. Eu dou o que eles querem, eles me dão o que eu preciso. A filmagem final foi ideia do Hideo. Aliás, foi ele quem fez a pergunta de um milhão de dólares no Verdade ou Consequências.
Hideo esticou o polegar mais uma vez.
— Essa gravação vale uma fortuna nos canais certos. E quando eu disser no “Mundo de Sato” que você desapareceu bem aqui, em Aokigahara? Lisa, nós vamos ter mais seguidores que a Oprah!
— Diz quando eu paro de gravar — Hideo perguntou por trás da câmera.
Yagami pensou um pouco e logo respondeu:
— Vamos esperar o sangue coagular. Todo mundo gosta de sangue.