Se a cultura representa, de certa forma, aquilo pelo que a sociedade está passando no momento em que é produzida, então os anos 1980 foram anos bastante complexos — pelo menos de acordo com a Disney.
A gente conhece bem a casa do Mickey Mouse: apesar de muitos de seus filmes — live action e animações — conterem alguns elementos macabros, como Dumbo ou Pinóquio, ainda assim são cenas leves que levam a um objetivo maior: o drama. Não são, portanto, considerados filmes de terror, ou mesmo com elementos explícitos de terror. O sobrenatural, quando presente, age de forma bastante leve. Até então, a coisa mais assustadora já feita pela Disney havia sido Chernabog em Fantasia — literalmente um demônio azul, com direito a chifres e tudo. E, mesmo assim, dado o produto Fantasia, é difícil considerá-lo uma animação para crianças.

Então, o que explicam as produções assustadoras da Disney dos anos 1980, que contaram até mesmo com diretores consagrados de filmes de terror e foram veiculados no canal de TV do estúdio?
Investigando o cenário
Se pensarmos nos grandes filmes dos anos 1970, pelo menos em questão de bilheterias e que sobreviveram ao teste do tempo, logo nos vem à mente Tubarão (1975), Star Wars (1977), O Exorcista (1973), Alien, O Oitavo Passageiro (1979), além de alguns filmes mais adultos e sérios, como O Poderoso Chefão (1972) e Apocalypse Now (1979).
Na Disney, naquela década, os filmes lançados que fizeram mais sucesso foram Aristogatas (1970), Robin Hood (1973), A Montanha Enfeitiçada (1975), Bernardo e Bianca (1977) e Muppets: O Filme (1979). Com exceção de Muppets, e apesar de todos os outros filmes citados terem seus fãs e seus valores, a década não deu muitos sucessos para o estúdio. A conclusão chegada por seus executivos (e, olhando em retrospecto, podemos considerar que eles tinham certa razão), é que o público estava atrás de outra coisa.

Talvez o mercado infantil tenha perdido um pouco de espaço? Sabemos que uma parcela considerável da audiência dos cinemas, pelo menos entre as décadas de 1950 e 1990, era a dos jovens — adolescentes e jovens adultos. O fato é que: entre Bernardo e Bianca e Star Wars, o público preferiu Star Wars — cujos direitos foram oferecidos para a Disney por George Lucas, ainda na época em que estava sendo planejado, e foram rejeitados.
Naquele momento, Ron Miller, antigo jogador de futebol dos Estados Unidos e genro de Roy Disney — quem assumiu a cadeira de gerência após a morte de seu irmão, Walt Disney, em 1966, mas faleceu pouco tempo depois, em 1971 —, era o manda-chuva da empresa. Ainda assim, as primeiras vezes em que disse que deveriam apostar em temas mais adultos, ele não foi levado a sério.
O Abismo Negro

É certo que a Disney não fazia apenas filmes infantis até os anos 1970. Eles investiram em dramas e outros filmes do tipo, mas seus temas, ainda assim, eram bastante abertos a todas as idades. Isso mudou de figura com o lançamento de O Abismo Negro, uma ficção científica obscura do final da década de 1970.
Dirigido por Gary Nelson, com roteiro de Jeb Rosebrook e Gerry Day, o filme foi lançado em 1979 e acompanha a tripulação de uma nave chamada USS Palomino que encontra a nave USS. Cygnus, desaparecida há vinte anos, próxima a um buraco negro. Seu único tripulante humano, dr. Hans Reinhardt, é considerado um gênio, e seu maior objetivo é adentrar aquele buraco negro.

Para alguns, esse dilema entre explorar ou não um buraco negro pode lembrar O Enigma do Horizonte. Como um artigo da Den of Geek afirmou, “Com O Abismo Negro, a Disney — ou pelo menos Ron Miller — estava interessado em um tipo de filme mais ousado”. O filme recebeu uma maioria de críticas negativas em seu lançamento. Muitos ficaram até mesmo preocupados de que o filme pudesse “manchar” a memória da Disney. Posteriormente, porém conquistou seu lugar entre os fãs da ficção científica ao passar dos anos.
E foi então que chegamos aos anos 1980 e às grandes apostas da Disney com seus “temas mais ousados”.
A Disney macabra dos anos 1980
Podemos citar pelo menos três filmes em live action que caminharam pelas obscuras e estranhas trilhas do terror e do macabro na Disney nos anos 1980, todos eles adaptados de obras literárias. Esses filmes não tiveram uma boa recepção nos cinemas (Mistério no Bosque, por exemplo, mal foi lançado na telona; o filme teve um lançamento limitado em apenas um cinema, ficando 10 dias em exibição), e nenhum deles recuperou o valor investido. Ainda assim, são esforços interessantes da Casa do Mickey Mouse de viajar por este terreno pantanoso.
Vamos conhecer um pouco mais sobre essas três produções.
Mistério no Bosque

The Watcher in the Woods, 1980 // Baseado no livro A Watcher in the Woods, de Florence Engel Randall, lançado em 1976 (relançado em 1980 com o título utilizado pela Disney, The Watcher in the Woods). Na história, acompanhamos Jan (Lynn-Holly Johnson) e sua família, que se mudam para um casarão antigo e cercado por uma misteriosa floresta. Todos que vivem ali conhecem as lendas locais de estranhos acontecimentos sobrenaturais. A dona do local, Mrs. Aylwood (Bette Davis), esconde um segredo sobre o que realmente aconteceu ali, e pode colocar Jan e sua família em perigo. O filme ganhou um remake em 2017, lançado pelo canal Lifetime, e dirigido por Melissa Joan Hart (sim, a Sabrina de Sabrina, Aprendiz de Feiticeira dos anos 1990), com Anjelica Huston no papel de Aylwood.
A versão dos anos 1980 de Mistério no Bosque foi dirigida por ninguém menos que John Hough, que havia, anos antes, adaptado outra obra — dessa vez, de terror adulto de fato —, com A Casa da Noite Eterna, adaptação de A Casa do Inferno, de Richard Matheson, que também assinou o roteiro do filme de Hough.
No Templo das Tentações

Something Wicked This Way Comes, 1983 // Adaptado do livro Algo Sinistro Vem Por Aí, de Ray Bradbury, publicado em 1962 e considerado um clássico infantojuvenil, a história acompanha a história dos jovens Will Halloway (Vidal Peterson) e Jim Nightshade (Shawn Carson), vizinhos de longa data e que conhecem todos os moradores da cidade, e que certo dia assistem à estranha chegada de um circo misterioso na cidadezinha de Green Town. Chefiado por Mr. Dark (Jonathan Pryce), logo o que parecia ser uma diversão se transforma em um pesadelo terrível. Algo Estranho Vem Por Aí é um livro envolvente e emocionante, e, dentre esses filmes da Disney, ele foi o que se saiu melhor — mesmo que, ainda assim, não tenha se saído tão bem, fazendo cerca de 8 milhões em bilheteria nos Estados Unidos, contra um orçamento de 20 milhões. Hoje, entretanto, é considerado um clássico cult por alguns fãs de terror dos anos 1980.
Quem dirigiu o filme foi Jack Clayton, com roteiro do próprio Bradbury. Originalmente, Algo Estranho Vem Por Aí seria um roteiro escrito para que Gene Kelly o dirigisse, algo que nunca aconteceu, então Bradbury transformou o roteiro em livro. Anos depois, o transformou novamente em roteiro, para ser dirigido por Clayton. Clayton é um nome conhecido no terror por ter dirigido Os Inocentes, adaptação de A Volta do Parafuso de Henry James, um dos grandes clássicos do horror psicológico — ou do suspense, como você preferir encarar.
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O Mundo Fantástico de Oz

Return to Oz, 1985 // Uma continuação não oficial do clássico de 1938, O Mágico de Oz, O Mundo Fantástico de Oz não é uma adaptação direta e um dos livros de L. Frank Baum sobre esse universo, e sim uma combinação dos livros The Marvelous Land of Oz (1904) e Ozma of Oz (1907). No filme, acompanhamos novamente Dorothy (Fairuza Balk, em seu primeiro papel) alguns meses depois de seu retorno da terra encantada de Oz. Apesar de estar com a saúde restabelecida, Dorothy não consegue tirar aquele lugar da cabeça. Preocupada, sua tia Em (Piper Laurie) a leva para outra cidade, para se tratar com um médico que recomenda um tratamento com eletrochoque. Logo, entretanto, Dorothy é resgatada por uma misteriosa garota que a leva de volta para Oz.
O Mundo Fantástico de Oz pode ser considerado menos um filme de terror que seus antecessores, mas não menos aterrorizante. Com cenas dignas de causar pesadelos da juventude oitentista, ainda hoje é considerado um filme assustador. Foi dirigido por Walter Murch, que apesar de não ter a experiência na cadeira da direção como os outros dois diretores citados, tinha uma vasta experiência com a carreira cinematográfica, principalmente nos departamentos de Edição e Som, onde trabalhou em filmes como Apocalypse Now (1979) e THX 1138 (1971).
E não foram apenas os live action…

Ainda em 1985, a Disney lançou uma de suas animações mais obscuras, e com certeza a mais assustadora. O Caldeirão Mágico é uma típica história de capa e espada — as narrativas fantásticas que derivaram dos romances de cavalaria, com terras mágicas e distantes e um cavaleiro herói que salva o dia. Na história, o jovem Taran, do reino de Prydain, recebe a missão de cuidar do porquinho mágico Hen Wen, que sabe a localização do Caldeirão Mágico, um artefato que não pode, de jeito nenhum, ser encontrado pelo Rei de Chifres (no original, The Evil Horned King).
O Caldeirão Mágico é uma animação pouco lembrada pelo público geral, mas que conseguiu encontrar seus fãs entre os aficionados pelo macabro e o horror.
Enfim, os anos 1990
A década seguinte trouxe algumas outras animações estranhas para a casa do Mickey. Gárgulas e Darkwing Duck são apenas dois dos exemplos que saltam aos olhos. A temática “terror” continuou em alguns filmes live action, mas voltados ao público mais infantil, como Halloweentown.
Olhando em retrospecto para aquela década, entretanto, com algumas produções de outros estúdios e canais, é difícil não pensar que talvez a Disney tenha errado em alguns anos em seus lançamentos. Os anos 1990 já começaram com o lançamento de Clube do Terror, da Nickelodeon, e cerca de dez anos depois de O Mundo Fantástico de Oz e O Caldeirão Mágico chegava às telinhas a série de Goosebumps, pela Cartoon Network e Fox Kids. As duas séries acabam tendo um clima parecido com os lançamentos assustadores da Disney, que talvez estivessem melhor acompanhados deles do que de seus pares — é difícil competir com filmes como A Hora do Pesadelo e Sexta-Feira 13 com a juventude; apesar de seus temas mais sombrios, ainda assim eram histórias infantis, como Clube do Terror e Goosebumps.

Isso tudo, é claro, é apenas uma conjectura. Não podemos afirmar que esses filmes teriam tido mais atenção se lançados em outros momentos. Podemos, porém, ficar ressentidos pelo fato de a Disney ter esquecido as próprias obras. Com exceção de O Mundo Fantástico de Oz, que está no serviço de streaming do estúdio, os outros filmes são dificilmente encontrados hoje em dia — e, quando encontrados por meio obscuros, com uma qualidade baixíssima. As informações que correm é que a Disney não tem cópias boas o suficiente desses filmes para serem colocadas em seu catálogo no Disney+. Seja isso ou uma certa vergonha desses lançamentos obscuros dos anos 1980, quem perde somos nós.
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