A Forma da Água: uma homenagem de Del Toro para O Monstro da Lagoa Negra

Quando criança, Guillermo del Toro assistiu O Monstro da Lagoa Negra mas não ficou feliz com o desfecho. Então ele criou sua própria versão da história em A Forma da Água.

Guillermo Del Toro, um artista visionário, original e irreverente, ficou conhecido conhecido por seus filmes de monstros que tecem uma nova visão sobre as criaturas: mais sentimentais, esses monstros frequentemente são vistos como criaturas terríveis pela humanidade, como em Hellboy. Ou, mesmo que tenham poderes aterrorizantes, há uma ameaça ainda mais poderosa e assustadora à espreita, como é o caso em O Labirinto do Fauno ou A Espinha do Diabo. Piores ainda são os humanos.

Del Toro, por meio de seus trabalhos, tem frequentemente nos mostrado um mundo mágico escondido nos horrores diários. E os monstros são sua paixão mais antiga.

O início de tudo

Quando criança, Guillermo del Toro se apaixonou por monstros — no sentido mais amplo da palavra. Enquanto a maioria das crianças torcia para nunca se deparar com criaturas assustadoras embaixo de suas camas ou os observando naquela fresta aberta do guarda-roupa, Del Toro dava os primeiros passos rumo ao seu grande destino: o de criar monstros e pesadelos. 

Um de seus filmes favoritos, e que chamou sua atenção de imediato, foi O Monstro da Lagoa Negra. Lançado em 1954, o filme já fazia parte da última leva de grandes filmes de monstros da Universal. Dirigido por Jack Arnold, contava a história de uma equipe que viajava até a Amazônia para pesquisar uma estranha espécie antiga descoberta ali. Dentre os pesquisadores, estão dr. David Reed (Richard Carlson), e Kay Lawrence (Julia Adams), que além de pesquisadora também é namorada de Reed.

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Mas não é somente a atenção de Reed que Kay atrai durante a viagem. Após ter seu local de descanso violado, a chamada Lagoa Negra, a criatura anfíbia persegue o barco Rita, onde a expedição está viajando, durante todo o percurso. Gillman (interpretado pelos atores Ricou Browning embaixo d’água e Ben Chapman na superfície), a criatura, consegue se aproximar de Kay enquanto ela está nadando. Em determinado momento, a criatura é capturada, e após conseguir fugir, sequestra Kay e a leva para uma caverna. 

Para Del Toro, a cena em que a criatura e Kay nadam juntas deixou uma marca profunda em sua memória. O cineasta afirmou diversas vezes que gostaria que ambos terminassem o filme juntos. Dr. Reed que se resolvesse para lá.

Ao longo de sua carreira, um dos projetos que ele mais queria desenvolver era um remake de O Monstro da Lagoa Negra. Isso quase foi possível em 2002, com um roteiro assinado por  Gary Ross, junto de seu pai, Arthur A. Ross, um dos roteiristas do filme de 1954. A visão de Del Toro era incompatível com a do estúdio, que demitiu o cineasta e contratou outro. O projeto, assim como várias tentativas de remake de O Monstro da Lagoa Negra e diversos outros filmes dos Monstros da Universal nunca foi adiante.

Em 2017 o mundo finalmente conseguiu compartilhar da visão de Del Toro para esta história em A Forma da Água. Com direção de Del Toro, e roteiro escrito por ele e co-escrito por Vanessa Taylor, o filme é uma homenagem única e bela a um filme tão especial e arrebatou quatro estatuetas do Oscar.

Uma história de amor fantástica

Em A Forma da Água, acompanhamos a história de Elisa (Sally Hawkins), uma jovem muda que trabalha como faxineira em uma das instalações do governo norte-americano em plena Guerra Fria. Longe de ter muitos amigos, os maiores alicerces de Elisa são Zelda (Octavia Spencer), que trabalha com Elisa nas mesmas instalações, e Giles (Richard Jenkins), seu vizinho. A vida pouco movimentada de Elisa muda drasticamente de rumo quando, certo dia, o coronel Richard Strickland (Michael Shannon) leva um novo objeto de pesquisa para as instalações: uma criatura anfíbia humanoide (interpretada por Doug Jones).

O primeiro contato de Elisa com a criatura, para além do medo, é de entendimento mútuo. Del Toro conseguiu captar, através dos atores que interpretam ambos os personagens — mesmo Jones, coberto de maquiagens e próteses —, os olhares essenciais para que os espectadores reconhecessem a conexão íntima que ambos tiveram logo no primeiro momento. 

O relacionamento de ambos continua a crescer, e cada vez mais Elisa percebe que as instalações militares são pouco amigáveis com o Homem Anfíbio. Quando as coisas fogem do controle e Strickland, cada vez mais obcecado por Elisa e por destruir a Criatura, resolve exterminar de vez o Homem Anfíbio, Elisa foge com ele e o leva para casa. 

Com cenas brilhantemente executadas, que viajam entre os filmes clássicos e a própria assinatura de Del Toro que conhecemos de outras obras icônicas do cineasta, A Forma da Água é uma homenagem de todo o coração de seu diretor para aquilo que ele mais ama: os monstros, o cinema, o poder de contar histórias e inverter pontos de vistas narrativos.

Ao tirar o foco da monstruosidade do Homem Anfíbio para seus outros sentimentos, e focar cada vez mais na degradação humana e no anseio por destruição, presente no personagem do Coronel Strickland, Del Toro nos conta uma história bastante diferente daquela dos anos 1950, apresentada por Jack Arnold. Isso está diretamente ligado à própria visão do diretor sobre quem são os verdadeiros monstros, no final das contas.

A criação das Criaturas

Por trás dos visuais tão bem executados dos monstros que vemos em ambos os filmes, alguns nomes se destacaram e trouxeram para nós duas das criaturas mais bem executadas do cinema.

No caso de O Monstro da Lagoa Negra, Gillman teve seu rosto pensado e desenhado por Milicent Patrick. A história de Milicent ficou escondida nas gavetas mais profundas da Universal Studios até recentemente, quando Mallory O’Meara fez uma pesquisa profunda para seu livro, A Dama e a Criatura, que conta toda a carreira da artista, que foi ofuscada pela inveja de um de seus superiores, o chefe do departamento de criação Bud Westmore.

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Del Toro é um grande admirador do aspecto anfíbio de Gillman e, para ele, a Criatura possui o melhor design entre os filmes de monstros. Composto por dois trajes, um para superfície e um para baixo d’água, ambos feitos especificamente para os atores que os usaram — Ben Chapman e Ricou Browning, respectivamente —, a roupa da Criatura possui diversos detalhes mas, claro, a atenção recai imediatamente em sua máscara, criação de Milicent.

Observando o design utilizado por Del Toro e pela equipe da Legacy Effects, coordenada por Shane Mahan — grande nome da indústria, reconhecido pelos efeitos animatrônicos e por ter trabalhado no primeiro filme do Homem de Ferro, em 2008, concorrendo ao Oscar, BAFTA, Saturn e Satellite pelos efeitos visuais —, podemos encontrar muitos elementos de Gillman (e também de um outro anfíbio humanóide pelo qual os fãs são apaixonados, Abe Sapien).

Graças à história de Del Toro com O Monstro da Lagoa Negra, Shane Mahan soube onde procurar inspiração. E, imediatamente, Del Toro também soube quem seria o ator perfeito para vestir as próteses de espuma de borracha com silicone. Doug Jones já trabalhou diversas outras vezes com Del Toro, como em O Labirinto do Fauno e fazendo o próprio Abe Sapien nos dois filmes adaptados dos quadrinhos de Mike Mignola, Hellboy. Um ator que aguentaria o tempo de aplicação de próteses e teria o desenvolvimento necessário para utilizá-las.

A escolha caiu como uma luva — ou como um traje delicado e feito sob encomenda. Doug Jones entregou um Homem Anfíbio fluido, com maneirismos e trejeitos que poderiam ter saído de uma criatura moradora dos lagos mais profundos e ainda não descobertos pela humanidade.

A homenagem de Del Toro, filme que levou mais de duas décadas para conseguir tirar do papel — ainda que sob um nome diferente — foi indicado em três categorias no Oscar de 2018, e venceu quatro: Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Direção de Arte, Melhor Filme e Melhor Diretor, além de diversos outros prêmios cinematográficos.

Em seu discurso na cerimônia da Academia, Del Toro contou sobre como foi crescer no México e ser um jovem apaixonado por filmes estrangeiros, e dedicou a estatueta aos jovens cineastas que têm mostrado cada vez filmes mais inovadores. No Globo de Ouro, onde também ganhou o prêmio por Melhor Diretor, Del Toro fez um discurso mais íntimo, onde agradeceu aos monstros em sua infância e disse que “em algum lugar, Lon Chaney está sorrindo para todos nós”. 

A paixão de Del Toro por monstros e sua obsessão por O Monstro da Lagoa Negra construiu um legado no cinema. Esperamos ver ainda muitas histórias sendo feitas com tanto coração quanto o cineasta colocou em A Forma da Água

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.