O mundo do cinema e do teatro fazem parte da vida de Mary Harron desde muito cedo. Filha da atriz Gloria Fischer e do ator Donald Harron, esta cineasta canadense passou boa parte da infância dividida entre Toronto e Los Angeles, em função do divórcio de seus pais.
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Ainda jovem, uma de suas madrastas foi a atriz Virginia Leith, descoberta por Stanley Kubrick no primeiro filme do diretor, Medo e desejo. Por causa da forte influência do cinema e das artes na vida da família, a irmã dela, Kelley Harron, também seguiu carreira na área, só que como atriz e produtora.
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Aos 13 anos, Mary se mudou para a Inglaterra, onde cursou a faculdade de Inglês em Oxford. Depois disso, nos anos 1970, ela se mudou para Nova York e participou do cenário punk da cidade na década. Lá, ela trabalhou como jornalista musical, mais especificamente na cobertura de bandas de rock.
Do jornalismo para o cinema
Depois de trabalhar como repórter de música e crítica para periódicos como o The Guardian, Mary Harron deu seus primeiros passos no audiovisual dirigindo documentários para a BBC no final dos anos 1980. Na década seguinte, ela produziu programas dedicados à cultura pop para a rede de TV PBS.
Foi nesta época que Mary Harron decidiu se dedicar a um projeto autoral. Ela se interessou em produzir um documentário sobre Valerie Solanas, a mulher que tentou matar Andy Warhol.
A escolha do projeto, para Mary Harron, foi bem pessoal, justamente porque a cineasta entende parte da frustração que levou Solanas a querer cometer o crime. “Eu acredito que há elementos da minha própria frustração e elementos que mostram como é crescer com uma atitude injusta sobre as mulheres… e Valerie foi um exemplo extremo disso”.
No filme Um tiro para Andy Warhol, o primeiro dirigido por ela, Harron não busca enaltecer a figura de Valerie Solanas, apenas apresentá-la como o produto de um sistema muito mais abrangente de crueldade. A cineasta tenta fazer justiça à figura de Solanas, defendendo que ela não era uma lunática, mas sim, um membro frustrado da sociedade. O filme foi lançado em 1996.
Psicopata Americano e o reconhecimento em Hollywood
Com a experiência do primeiro filme, Mary Harron já sabia algumas coisas que faria diferente em seu segundo longa-metragem: Psicopata Americano. Ela já havia tentado ler o livro de Bret Easton Ellis, e, embora tivesse considerado hilário pela sagacidade do humor, decidiu fazer uma pausa em uma passagem que considerava muito violenta.
Algum tempo se passou e ela considerou que o timing era ideal para que Psicopata Americano pudesse ser considerado um filme de época, já que ele é ambientado nos anos 1980. O problema, é que ela não estava satisfeita com os roteiros que lhe foram enviados para o filme: Harron os considerava mainstream demais. Por isso, ela própria assumiu a escrita do roteiro, em parceria com Guinevere Turner.
Mas isso não significa que o processo de produção tenha sido menos conturbado. O livro de Easton Ellis já havia causado controvérsia por causa de sua violência, principalmente direcionada a mulheres. Como se isso não fosse suficiente, conseguir aprovar o roteiro com algum estúdio que topasse bancar a ideia foi ainda mais difícil do que quando ela havia produzido Um tiro para Andy Warhol. “Há uma coisa específica que frequentemente se torna uma objeção aos meus roteiros: as pessoas querem mais psicologia. Mas ter uma explicação psicológica muito óbvia não me interessa muito”, declarou Harron recentemente ao site Vulture.
Não foi apenas em Psicopata Americano que ela encontrou esta resistência, mas também com Um tiro para Andy Warhol e Bettie Page, de 2005. Valerie Solanas e Bettie Page tinham sofrido abuso de seus respectivos pais, mas ela não queria que este fosse considerado o principal fator para suas ações. “É determinista, é simplista, e eu não acredito que seja completamente verdade”. Com Patrick Bateman, de Psicopata Americano, o cuidado para não oferecer uma justifica simplória para suas ações foi ainda maior: “Em reuniões que eu participava queriam saber mais sobre a infância e os pais dele. Não interessa se a mãe dele foi má com ele. Eu não me importo. O cara é um monstro”.
Mesmo com tantas turbulências no processo de produção, que arrastaram o projeto por alguns anos, o filme foi lançado no Festival de Sundance e dividiu a opinião de crítica e de público. Hoje, passados 20 anos de seu lançamento, Psicopata Americano alcançou o status de cult e ainda é visto como o projeto que abriu muitas portas para Mary Harron em Hollywood – ela própria se considera grata pelo burburinho causado pela produção.
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Os trabalhos após Psicopata Americano
Embora ainda possa ser considerado seu maior sucesso, Psicopata Americano não define a carreira de Mary Harron. Desde então ela se envolveu em diversos projetos para a TV, principalmente na direção de episódios de séries como Six feet Under, The L Word e The Following. Apesar de não concordar com a soberba de alguns artistas em menosprezar os projetos de TV, Mary Harron sempre se sentiu mais inclinada a fazer seus filmes, que é quando ela tem mais liberdade para moldar os projetos.
Além dos trabalhos com TV, desde Psicopata Americano ela dirigiu outros três longas para o cinema:
Bettie Page (2005): o filme conta a história de uma modelo pin-up dos anos 1950 que precisa testemunhas diante de um comitê de investigação sobre os efeitos de materiais pornográficos sobre adolescentes.
Relação Mortal (2011): o longa de fantasia e terror é ambientado em um colégio interno, onde um grupo de garotas desconfia que a aluna nova seja uma vampira. Harron descreve a produção como um filme de amadurecimento gótico.
As discípulas de Charles Manson (2018): inspirado na seita de Charles Manson, o filme se concentra em três jovens condenadas à pena de morte pelos assassinatos cometidos em nome do líder do grupo. Porém, quando a pena de morte foi revogada e elas são, então, condenadas à prisão perpétua, aprendem sobre a terrível realidade de seus crimes.
Os trabalhos mais recentes da cineasta envolvem a direção de todos os episódios da minissérie da Netflix Alias Grace, baseada em um livro de Margaret Atwood. Atualmente ela trabalha na pré-produção do filme Dali Land, uma cinebiografia do artista Salvador Dali, que conta com Ben Kingsley e Ezra Miller escalados para o elenco.
Uma diretora feminista mas não ideológica
Pela recorrência de personagens femininas complexas, Mary Harron é frequentemente chamada de “diretora feminista”. Embora se considere feminista desde sempre, ela não acredita que deva ser definida desta forma. Isso porque Harron não segue uma ideologia feminista bem definida, mas sim, explora as questões relativas às mulheres de uma forma mais ampla, sem se ater a uma perspectiva de gênero.
Para a cineasta, é possível ser feminista e abordar questões políticas nos filmes de forma menos incisiva e ideológica, conforme ela própria explica: “Todo mundo tem uma ideologia, é óbvio, e em alguns casos inescapável. Mas eu não estou ensinando lições de moral através dos meus filmes.” Em outra ocasião, ela completou esta linha de raciocínio: “Eu não faço filmes feministas no sentido de que eu não faço nada ideológico. Mas eu observo que as mulheres entendem melhor os meus filmes. Mulheres e homens gays. Talvez porque eles se sintam menos ameaçados por eles ou porque eles entendem melhor o que eu estou tentando dizer”.
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