Em uma rápida pesquisa, você logo percebe dois detalhes sobre Marco de Castro: seu senso de humor ácido e extremamente pertinente e uma criatividade macabra que parece brotar à flor da pele.
Para quem ainda não o conhece, Marco de Castro é jornalista, escritor, punk-rocker e tem sido parceiro em alguns roteiros sensacionais de Dennison Ramalho — falamos de pérolas como o brutal Ninjas e o sagaz Morto Não Fala, que vem ganhando atenção Brasil afora.
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Convidamos Marco para falar um pouco de sua carreira macabra e dos planos nefastos que ele tem para o futuro. Preparem-se. Morto não fala, e o Marco sabe colocar as palavras nos lugares certos em qualquer situação.
Um bate-papo com Marco de Castro
- Marco, muito obrigado pelo seu tempo conosco. Você ainda trabalha como jornalista? Conte-nos um pouco sobre como começou seu interesse pela escrita de ficção.
Eu que agradeço pela oportunidade! Sim, jornalismo é meu ganha-pão, o que paga as minhas contas. Atualmente, trabalho como editor no portal R7.
Quanto ao interesse pela escrita de ficção, acho que começou ainda na infância, lá pelos 8 anos de idade. Nessa época, eu viciei em quadrinhos de super-heróis e, quando não estava lendo, ficava bolando alguma história dos X-Men ou do Batman dentro da minha cabeça. Na adolescência, viciei também em filmes de terror. Minha mãe, percebendo minha quedinha por coisas mórbidas, começou a me dar Agatha Christie para ler. Tramas de mistério e assassinato. Eu gostei, e não demorou muito para passar para Stephen King, Clive Barker… Li O Exorcista, do William Peter Blatty, e Psicose, do Robert Bloch, quando tinha 11 anos.
E uma das coisas que me fez decidir cursar jornalismo, aos 19, com certeza, foi a possibilidade de trabalhar com a escrita, contar histórias. O que consegui, pois, logo de cara na minha vida profissional, trabalhei como repórter no jornal Agora São Paulo, cobrindo, na maior parte do tempo, casos de polícia. Enchi muitas páginas de jornal com histórias horríveis, sangrentas e assustadoras. Muitas dessas experiências viraram crônicas no meu blog Desgraceira, que, na época, lá para 2003, 2004, tinha alguns seguidores fiéis. Os comentários desses seguidores, elogiando meus textos de desgraça, foi o que me inspirou a tentar a sorte na ficção. Foi aí que resolvi criar o blog Casa do Horror. Morto Não Fala foi o quarto conto publicado neste blog.
- Em uma rápida olhada em seu currículo, notamos algumas atividades bastante peculiares. Pode nos contar um pouco sobre esses trabalhos e sobre como eles se tornaram inspiração para seus pesadelos escritos? Queremos curiosidades bizarras, não nos economize, por favor!
No meu dia a dia como repórter do Agora eu sempre cobria histórias horríveis. Entre os 22 e 27 anos de idade, período em que fui repórter do jornal, vi muito corpo de vítima de assassinato. Gente morta a tiro, facada, paulada na cabeça, carbonizada, linchada, enfim. Eu, como já tinha essa tendência para o mórbido, esse interesse por tramas de assassinato e coisas do tipo, ficava fascinado pelos detalhes em algumas dessas histórias. Teve o caso do vizinho que matou o outro porque este tinha botado um saco de lixo perto de sua porta. O caso do vendedor de churrasco que levou várias facadas porque se recusou a vender o último espetinho de carne da noite ao assassino, pois estava “reservado” para outro cliente… Histórias que me mostraram que muitas mortes brutais, no dia a dia, têm motivos bestas e banais.
Não que eu “gostasse” de ver corpos estropiados ou entrevistar pessoas que haviam acabado de ver um familiar em uma poça de sangue. É um trabalho pesadíssimo, triste e que muitas vezes deixa a gente mal. Mas não consigo negar que, quanto mais escabroso fosse o caso, mais eufórico eu ficava para ir atrás da história, sedento por detalhes mórbidos e assustadores.
Lá no blog Desgraceira tem uma história que acho que ilustra bem isso. Essa euforia que certos casos policiais me causavam. Foi a vez em que fui cobrir uma chacina em Guarulhos, num lugar bem afastado e rural chamado Fazenda Ponte Preta. Fomos para lá, eu, o motorista e o fotógrafo, quando já estava escurecendo. No caminho, nos perdemos várias vezes, pois aquela região não constava no guia de ruas Mapograf (naquela época não se falava em GPS). Pedíamos indicações de caminho em alguns povoados que encontrávamos no meio daquele fim de mundo, e as pessoas nos aconselhavam a não ir até aquele lugar onde havia ocorrido a chacina por ser muito perigoso. Enfim, chegamos ao local. Uma estrada de terra cercada de mato onde estava parada uma viatura da PM, preservando a cena do crime à espera da perícia. Os PMs nos disseram que os corpos estavam no meio do mato e que, para chegar até eles, bastava seguirmos uma trilha. Eles se recusaram a acompanhar a gente até lá, mas emprestaram uma lanterna. Fomos eu e o fotógrafo, e encontramos os corpos após alguns minutos andando no matagal. Eram três homens que haviam sido encontrados esmagados debaixo de uma carroceria de caminhonete (que naquele momento estava erguida). Destroçados, cabeças abertas, cérebro se espalhando pelo chão de barro. O fotógrafo começou a clicar os corpos enquanto eu os iluminava com a lanterna dos PMs. De repente, o fotógrafo me disse: “põe a lanterna na cara”. Sem pensar, fiz o que ele pedia, e ele me fotografou. Depois, quando estávamos de volta à redação, ele me mostrou a foto. Eu estava com um sorrisão insano na cara, diante daqueles corpos esmagados. Aquilo até me assustou. (Aliás, essa história do Desgraceira pode ser lida aqui).
- Como é ver um personagem criado dentro da sua cabeça ganhando vida na tela? Como começou a parceria com o diretor Dennison Ramalho, que já trabalhou com dois dos seus textos? Como foi trabalhar lado a lado com o roteirista?
Cara, é muito louco. Dá um puta orgulho. E, além de ver a parada na tela, tem também o lance de toda a movimentação que existe em torno da produção. Me impressiona saber que aquela historinha que saiu da minha cabeça de repente está fazendo um monte de gente trabalhar. Atores, equipe da direção, maquiador, iluminador, eletricista, técnico de som, figurinista… Lembro do dia em que pisei pela primeira vez no set do curta-metragem Ninjas, que teve a maioria das cenas filmadas em um galpão na região da Aclimação, em SP. Cheguei lá e vi toda aquela gente trabalhando. Posso dizer que foi emocionante. Não pude acompanhar as filmagens do Morto Não Fala, porque foram em Porto Alegre, mas só de saber que lá havia uma porrada de gente trabalhando em cima de uma história que criei, já fiquei muito feliz. Além disso, tem a emoção de saber que as historinhas que criei tão rodando festivais de cinema pelo mundo inteiro. Pode crer que, quando as escrevi, não fazia a mais vaga ideia de que isso aconteceria.
Me impressiona saber que aquela historinha que saiu da minha cabeça de repente está fazendo um monte de gente trabalhar.
Quanto à minha pareceria com o Dennison, começou por volta de 2004. Eu já escrevia o Casa do Horror quando li sobre o Amor Só de Mãe, outro curta-metragem incrível dirigido por ele. No texto, entrevistavam o Dennison, e ele dizia que a maior dificuldade de filmar terror no Brasil era a falta de escritores e histórias originais do gênero. Resolvi então ir atrás dele, descobri seu e-mail e mandei o link do Casa do Horror. No dia seguinte, ele respondeu a mensagem. Disse que tinha adorado meu blog, e marcamos de tomar uma cerveja. Nesse encontro, ele já me disse que queria transformar o Morto Não Fala em filme. E é lógico que eu topei na hora. Mas no cinema tudo é muito demorado e complicado. Os projetos dependem de grana de editais do governo (o que, aliás, está correndo risco no atual governo) e, antes que o Dennison conseguisse transformar o projeto de filmar o Morto Não Fala em algo concreto, publiquei no blog o conto Um Bom Policial, que ele gostou mais ainda. Foi o conto que deu origem ao Ninjas, lançado em 2010. Mesmo assim, o Dennison não abandonou o projeto de filmar Morto Não Fala. A chance surgiu alguns anos depois, quando a Globo se interessou pela história.
Eu assino o roteiro do Ninjas ao lado do Dennison e do Marcelo Veloso, mas meu trabalho foi basicamente dar alguns pitacos e sugerir alguns diálogos. No Morto Não Fala eu não assino o roteiro, mas também cheguei a dar algumas sugestões. O Dennison sempre mandava o texto para eu dar uma lida e perguntava minha opinião.
- Existe uma espécie de brutalidade em seu texto, aliada a diálogos brilhantes e um humor áspero que irresistivelmente nos faz sorrir. Qual sua opinião sobre o “politicamente correto” que ganha cada vez mais força nos últimos anos? Você acha que é possível ou válido ser político ou correto na literatura (ou cinema) de gênero?
Cara, vou dizer que não vejo com maus olhos essa “onda do politicamente correto”, não. Eu boto nas minhas histórias muito do que vi e vivi nos rolês que dava atrás de desgraças na periferia de São Paulo. Tento retratar o povo brasileiro como de fato ele é: muitas vezes ignorante, besta e preconceituoso (o que se comprovou nas últimas eleições). No Um Bom Policial, por exemplo, há racismo e violência policial, em Morto Não Fala, há machismo e feminicídio. Procuro mostrar isso de uma maneira horrível, odiosa e maligna. E se, no gênero horror, nossa intenção é chocar e causar repulsa, nada melhor do que retratar o mundo como ele é: brutal, injusto e asqueroso. Nem precisamos nos esforçar tanto para inventar monstros. Eles existem e estão à nossa volta. Os policiais violentos, os fascistas, os fanáticos religiosos, o lixo que elegeu o atual presidente. Nem precisamos de seres imaginários, como vampiros e lobisomens, com tanto monstro horrível e odioso circulando por aí.
E se, no gênero horror, nossa intenção é chocar e causar repulsa, nada melhor do que retratar o mundo como ele é: brutal, injusto e asqueroso. Nem precisamos nos esforçar tanto para inventar monstros.
Isso não quer dizer que eu não use elementos sobrenaturais nas minhas histórias. Eles sempre ajudam na hora de construir uma trama. Há fantasmas, espíritos malignos etc. Mas, no fim, a realidade brutal e violenta supera o horror “do além”.
Sobre o humor em meus textos, é aquela coisa: a gente acaba rindo de tanta desgraça. Um riso nervoso, fruto de um sarcasmo infame que surge de situações absurdas. Mas, no pensamento, condeno fortemente qualquer tipo de piadinha preconceituosa. Quando ouvi o presidente, no discurso de posse, dizer que queria “acabar com o politicamente correto”, o que eu senti foi repugnância profunda.
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- Nós vasculhamos sua vida, grande Marco, e descobrimos que você é um grande fã de Punk-Rock. Até que ponto a música influencia suas criações? Você escreve ouvindo música? Como é sua rotina de escrita?
Punk rock é minha vida! rs Sou vocalista de duas bandas punks, o Coice e o Aparelho. Produzo muito mais como músico, escrevendo letras e compondo riffs, do que que como escritor, aliás. Mas minha viagem na música é bem parecida com a da literatura. Minhas músicas também falam de coisas horríveis e odiosas rs. É provável que nunca ninguém escute uma canção minha de amor ou com mensagem otimista. O objetivo é sempre causar repulsa, revolta, indignação.
Quando escrevo minhas histórias, meus contos, às vezes boto música, sim, mas acabo ficando tão concentrado no texto, que o disco acaba e só percebo horas depois. Ou seja, geralmente escrevo no silêncio e, de preferência, quando estou sozinho em casa para não ser interrompido e não me distrair no meio do processo. E isso, por outro lado, é ruim para minha rotina de escrita. O trabalho no jornalismo demanda muitas horas na frente do computador, e termino o dia, geralmente, exausto. Então não escrevo todo dia. Tá certo que, geralmente, tem alguma história na minha cabeça e eu a fico desenvolvendo em pensamento. Surgem ideias, que vou remoendo até o dia em que estou mais sossegado para botar no papel. Só adoto uma “rotina de escrita”, mesmo, reservando um tempo diário para criar e escrever, quando me dão prazo. Aí trabalho melhor e mais intensamente. Porque vira compromisso e, apesar do cansaço do trampo, me obrigo a sentar na frente do computador nos momentos livres.
- Sobre o futuro, o que podemos esperar? Existe algum novo pesadelo sendo arquitetado?
Já há alguns anos tenho um projeto de série de terror para TV em parceria com um amigo meu cineasta, o Dacio Pinheiro (diretor do excelente documentário Meu Amigo Cláudia). Escrevemos vários episódios e continuamos correndo atrás de editais para tentar tirar isso do papel. Fora isso, tem um conto bem longo que escrevi chamado LP, que é inédito. Gostaria muito de publicá-lo em livro, talvez junto com outros contos. E atualmente estou escrevendo mais um conto, chamado Caixão Lacrado. Mas daquele jeito: a passos de tartaruga.