A sociedade nos ensina que ser mãe é uma das experiências mais significativas pela qual uma mulher pode (e supostamente deve) passar. Mas um bom número de filmes de terror tende a discordar deste pensamento. Seja por projetarem uma imagem tóxica ou serem incapazes de proteger seus filhos, as mães nos filmes de terror provavelmente são as personagens mais atormentadas do gênero.
Podemos separá-las em dois campos predominantes: o das mães malvadas, abusivas e que oferecem perigo aos seus filhos e o das mães histéricas, que são incapazes de proteger os seus descendentes. A primeira às vezes apresenta alguns sinais de Complexo de Édipo, como em Psicose, enquanto a segunda é a vítima que grita o tempo inteiro, lembrando um pouco as caracterizações mais rasas das Final Girls.
Más mães e a ameaça ao patriarcado
Vamos nos debruçar no primeiro grupo: das mães tóxicas, que são verdadeiras ameaças. Ele parte do ideal de que todas as mães são associadas ao cuidado, amor e proteção. Ao não se encaixarem nesta fantasia, as mães de filmes como O Babadook, Os Outros e Água Negra já transgridem a ideia de segurança normalmente associada à maternidade.
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Estes filmes exploram elementos que levam as mães a se tornarem estas figuras disfuncionais e destrutivas: pressão e expectativas da sociedade sobre o papel da mãe; a ausência do pai ou de figura paterna; a humilhação sobre o seu corpo; e o confinamento ao espaço da casa, normalmente atormentado por algo do passado.
Por causa destes elementos, elas deixam de ser a figura que dá a vida para, em muitos casos, ser aquela que tira a vida, tornando-se uma outra pessoa, monstruosa e paranoica, privando as crianças e a si mesma da sociedade. Em outras palavras, no imaginário popular mais simplista: se elas não são boas mães elas são automaticamente péssimas mães. Não há meio-termo aqui.
A ironia é que justamente esta pressão da sociedade é o primeiro elemento que provoca ansiedade na mãe, aumentando suas chances de se tornar disfuncional. Afinal, ela não está educando um filho somente para si, e sim, criando-o para o mundo. Resumindo, se a criança não se tornar um sucesso, isso é sinal de que a mãe fracassou.
Esta pressão se torna ainda maior quando falamos de mães sozinhas, como ocorre em muitos destes filmes. Além de cuidar da criança ela também é a provedora do lar, ocupando a função entendida como masculina. Sim, em pleno século 20 tem gente que ainda não aceitou a figura da mãe trabalhadora. Isso faz com que esta personagem seja constantemente julgada, ora por ser muito ausente, ora por ser presente até demais. Não tem como acertar aqui. Há uma cena em O Babadook que mostra bem este julgamento, principalmente partindo de outras mães.
Outra preocupação do imaginário popular sobre a mãe sozinha é o fato de ela privar seu filho do patriarcado e da autoridade masculina, principalmente quando pensamos em filhos meninos. Entende-se que a mãe só deve educar o filho até certo ponto e que, depois disso, ele será educado pela sociedade. Ao colocar a mãe no centro desta educação há o medo inconsciente que ela nunca libere seu filho para o convívio em sociedade. É aí que caímos no campo do Complexo de Édipo, tão explorado na série Bates Motel, que supostamente antecede Psicose.
Mães incapazes de proteger seus filhos
Nem sempre as mães são as vilãs diretas destes filmes de terror. Em alguns casos elas são apenas aquela personagem que está ali para gritar e ser histérica. Um exemplo bem emblemático disso é Wendy, em O Iluminado, atormentada pela loucura homicida do próprio marido.
Se a gente parar pra pensar, estes filmes são mais assustadores mesmo para as mães que os assistem, já que não existe nada mais desesperador do que a incapacidade de proteger seus filhos. Subliminarmente, há a mensagem de que mulheres simplesmente são destinadas a serem as vítimas, as presas, e que são, portanto, incompetentes no que diz respeito a sua própria proteção.
Felizmente, já começamos a ver algumas evoluções no gênero de terror do século 21. Filmes como Hereditário e Um Lugar Silencioso podem não ter destruído por completo estes arquétipos, mas têm dado mais camadas as suas protagonistas, com vícios e virtudes que as tornam personagens críveis. Ao mostrar que mães imperfeitas não são, necessariamente, monstros, e que vítimas nem sempre são desamparadas, estas produções conferem às personagens algo tão simples, mas tão necessário de alcançar: humanidade.
8 exemplos de maternidade do horror
Todas as situações que citamos aqui se encaixam em pelo menos um dos filmes a seguir. Desde as mães mais traiçoeiras até as aparentemente impotentes, listamos aqui alguns exemplos de personagens atormentadas não somente pelas ameaças presentes em suas histórias, mas também pela intimidadora carga estabelecida pela maternidade:
1. Rosemary
O Bebê de Rosemary, 1968 // Apesar de não ser a mãe solitária que mencionamos acima, para Rosemary teria sido melhor se o marido não estivesse por perto. A jovem católica e seu companheiro se mudam para Nova York, em um prédio com uns vizinhos estranhos que logo se mostram muito amigáveis (até demais). Não demora muito para que ela engravide, sob circunstâncias um tanto suspeitas.
Ao longo da gestação, a personagem começa a suspeitar de uma grande conspiração em torno do bebê, ao mesmo tempo em que ela é progressivamente alienada de seus amigos e familiares. O Bebê de Rosemary coloca a protagonista como uma vítima incapaz de mudar a sua condição e de se proteger, sendo conduzida a um estado extremo de paranoia e agonia psicológica. A julgar pelas circunstâncias de sua gravidez, ela tem todo o direito de se sentir assim.
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2. Amelia
O Babadook, 2014 // Este é um exemplo do impacto de uma mãe extremamente estressada na personalidade do filho, levando-o à instabilidade comportamental. A premissa se baseia na ideia de que filhos de mães depressivas se tornam violentos e problemáticos. O filme demonstra isso através do menino Samuel, que constrói armas para se defender dos monstros, denotando tendências violentas e temperamento difícil. Lembrando: Amelia é uma mãe viúva que tem que lidar com o próprio luto, a criação do filho, as expectativas da sociedade e o medo de falhar. Ah, e uma entidade maligna na sua casa, claro.
Mas a ideia da mãe tóxica vai mais longe aqui, chegando ao ponto em que Amelia diz que preferia que o filho tivesse morrido no lugar do marido, rejeitando completamente a sua figura materna. Ela repudia a ideia de que a maternidade deveria ser uma experiência de plenitude e constante sacrifício. Aos poucos, é ela quem se transforma no monstro.
3. Norma Bates
Psicose, 1960; Bates Motel, 2013-2017 // Em Psicose nós não sabemos muito sobre a verdadeira Norma, apenas sobre o efeito que ela teve sobre seu filho Norman – vamos combinar, os nomes Norma e Norman já deveriam ser um sinal de alerta. Mas a série Bates Motel busca explorar esta relação de mãe e filho que mergulha em territórios de tragédia grega.
Norma é uma viúva que se muda com o filho mais novo para gerenciar um hotel longe de onde eles costumavam morar. Com um passado traumático de abuso, ela se torna superprotetora do caçula, cultivando uma relação de codependência nada saudável para a dinâmica mãe x filho, entrando profundamente no inconsciente de Norman. Quando ela se dá conta da natureza psicótica do filho já é tarde demais.
O resultado desta influência pode ser observado no clássico de Alfred Hitchcock. Norman internaliza os aspectos mais controladores da personalidade da mãe e se torna um dos assassinos mais conhecidos do mundo do cinema.
4. Grace
Os Outros, 2001 // Grace é uma mãe que vive isolada na antiga mansão da família com seus dois filhos, enquanto seu marido não retorna da guerra. As crianças têm uma condição de saúde frágil, não podendo ser expostas à luz solar. O aspecto superprotetor de Grace acaba submetendo os filhos a rígidas regras.
Para piorar a preocupação da mãe, a mansão começa a dar sinais de estar sendo mal-assombrada. Uma sucessão surpreendente de eventos mostra as consequências nefastas do excesso de zelo de Grace, apontando-a como a principal ameaça à segurança das crianças.
5. Yoshimi
Água Negra, 2002 // Diferentemente de Amelia e de Grace, Yoshimi é uma mãe solitária por opção. Ao pedir o divórcio e ir morar em um apartamento com a filha, a personagem é responsabilizada por negar uma figura paterna à criança. Ou seja, todo o estresse de criar uma filha sozinha, trabalhando e lidando com um apartamento cheio de água, no fim, é tratado como se tivesse sido provocado por ela.
Além de ter que encontrar um emprego e provar para a assistência social que ela consegue cuidar da filha, Yoshimi ainda tem os problemas do apartamento molhado e assombrado e uma batalha judicial pela guarda da menina.
Como se isso não fosse ruim o suficiente, ela é cercada por figuras masculinas que não a ajudam em nada nos problemas do apartamento e ainda questionam sua sanidade. O ex-marido, inclusive, usa isso como arma para conseguir a guarda da filha. Ou seja, além de assombrações ela tem que lidar com gaslighting.
6. Wendy
O Iluminado, 1980 // Wendy Torrance é uma das personagens mais injustiçadas do cinema de horror. Quando ela, o marido e o filho se mudam para um hotel numa área isolada durante o inverno, é ela quem dá conta da manutenção do lugar, enquanto o marido se limita a se sentar na frente de uma máquina de escrever e a pirar em seus bloqueios criativos de escritor. Além de não ajudar, ele ainda se julga atormentado o suficiente para ameaçar a segurança da própria família.
E o que acontece com Wendy diante da virada de pá do marido? Ela se apavora, chora e sai gritando. Ok, o Jack Nicholson pirado é realmente assustador, mas resumir uma personagem tão multifuncional a isso é no mínimo injusto.
Felizmente, ela encontra algumas armas pelo caminho e dá um jeito de escapar com a criança, salvando as vidas dos dois. O que causa ainda mais revolta com o tratamento dado à personagem é saber do bullying que o diretor Stanley Kubrick praticava com a atriz Shelley Duvall, obrigando-a a regravar a mesma cena 127 vezes.
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7. Evelyn
Um Lugar Silencioso, 2018 // Assim como Rosemary, Evelyn também está grávida enquanto coisas horríveis acontecem ao seu redor. A diferença é que ela vive em um mundo pós-apocalíptico em que qualquer ruído pode ser uma sentença de morte. Mesmo com a presença do marido em muitos momentos, no fim das contas a sobrevivência da família depende primordialmente dela.
Há uma simbologia muito forte neste filme: a personagem é obrigada a, literalmente, sofrer em silêncio para sobreviver. Sem contar que ela é mais torturada do que qualquer outro personagem: a mulher é perseguida constantemente, quase se afoga, pisa em um prego e, claro, tem um trabalho de parto. Tudo isso no mais absoluto silêncio.
8. Annie
Hereditário, 2018 //Annie reúne duas das principais características das mães em filmes de terror: ao mesmo tempo em que ela causa mal aos filhos, é incapaz de protegê-los. Mas isso só faz sentido porque o roteiro de Ari Aster entrega uma personagem multifacetada, com uma história muito mais profunda em jogo.
Hereditário se destaca da maioria dos outros filmes por mostrar que a questão é muito mais profunda. Trata-se de um filme sobre os impactos que as palavras e ações dos pais têm nos filhos, sobre como as famílias podem destruir seus membros e como ser mãe é estar pronta para falhar repetidamente.
Muitas das coisas horríveis que acontecem no filme normalmente estão relacionadas às ações de Annie e ao que ela fala aos filhos. Trata-se de uma personagem desequilibrada, apática e rancorosa. É o pior que a maternidade pode oferecer, sem fazer isso de uma forma caricata. O castigo de Annie aqui é ver as pessoas que ela mais ama sofrerem por causa de seus atos.
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