Uma cena estranha se apresenta: uma jovem pálida, adormecida, jaz imóvel e um pouco contorcida em uma cama. Acima dela, uma estranha criatura está sentada sobre seu abdômen. Do canto esquerdo, um cavalo preto de olhos brancos observa a cena. Você já deve ter se deparado com essa imagem por aí. Intitulado The Nightmare — O Pesadelo —, essa pintura de Henry Fuseli data de 1781 e se tornou bastante conhecida entre os fãs do horror e do gótico.
Medindo cerca de 1,01 m x 1,26 m de largura, a peça hoje se encontra no Instituto de Artes de Detroit, mas sua primeira exibição aconteceu na Academia Real Inglesa, em 1782, e chamou bastante atenção — ao longo de sua vida, Fuseli ainda faria outras três versões deste quadro.
Mas O Pesadelo e seu criador guardam outras peculiaridades, e algumas delas estão ligadas a Frankenstein, Mary Shelley e sua mãe, Mary Wollstonecraft. A Macabra reuniu algumas curiosidades sobre essas conexões.
As possíveis interpretações da obra
Muitos teóricos têm se debruçado sobre esta pintura ao longo dos anos. A primeira e principal interpretação da cena que se desenrola no quadro de Fuseli é a dos próprios pesadelos. Apesar de ainda ser alvo de debates, alguns estudiosos da língua afirmam que a palavra “Nightmare” deriva do inglês antigo, onde “night”, que é noite, se liga a “mare”, que poderia ser uma antiga criatura maligna que aterroriza os sonhos das pessoas. “Mare” também significa égua, e por isso esses animais acabam sendo associados com pesadelos e sonhos ruins. Com a presença do cavalo no canto do quadro, acredita-se que isso levaria a cena que vemos ao campo do sonhar.
A criatura em cima do abdômen da jovem também poderia ser uma representação da famosa “paralisia do sono” que, faltando uma forma para explicar o fenômeno, os contemporâneos de Fuseli o deixavam nas mãos de folclore e lendas antigas, como um goblin ou demônio que se sentava no peito de suas vítimas desacordadas, presentes, por exemplo, no folclore germânico e escandinavo.
Uma outra interpretação, entretanto, estaria no campo sexual. Fuseli era reconhecido por seus relacionamentos, e alguns teóricos acreditam que essa seria a representação que o homem sentia por uma de suas paixões, chamada Anna Landholdt. Em cartas, Fuseli afirmava que havia sonhado com a moça em seu quarto. Ao pedi-la em casamento, entretanto, o pedido lhe foi negado.
Nada impede que as duas interpretações sejam corretas. Com o passar do tempo, elas meio que se tornaram intercambiáveis, e hoje o quadro é utilizado para representar ambos os temas.
A relação de Henry Fuseli e Mary Wollstonecraft
Talvez um dos primeiros contatos de Mary Wollstonecraft com Fuseli — tanto pessoalmente quanto com sua obra O Pesadelo — foi na casa de Joseph Johnson, famoso livreiro e editor de Londres que, também, foi de vital importância para o desenvolvimento de Mary como escritora. Depois de chegar a Londres, Wollstonecraft correu até Johnson e, com ele, conseguiu alguns trabalhos como revisora e tradutora de obras importantes. Foi com ele, também, que começou a escrever suas críticas literárias que ficaram tão famosas em sua época.
A casa de Johnson era conhecida pela recepção com os autores do período. Com jantares e muitas conversas — algumas até consideradas indecentes para os ouvidos de algumas damas, como conta no livro Mulheres Extraordinárias: As Criadoras e a Criatura, de Charlotte Gordon —, o lugar era a parada ideal para contatos. Além de Wollstonecraft e do próprio Fuseli, eram recebidos vários pensadores do período, como John Bonnycastle, matemático, e Erasmus Darwin. Além disso, Johnson também era um homem de fortes conexões, tendo ajudado Thomas Paine a sair da prisão e arrumando serviços de ilustração para William Blake.
Acima da mesa, na sala de jantar da casa de Johnson onde eram recepcionados os convidados, estava O Pesadelo, de Fuseli.
Foi através desses jantares que os laços de ambos se tornaram mais íntimos. Mary, como conta Gordon, se via extremamente interessada em Fuseli, e flertava abertamente com ele depois de passado o choque inicial das conversas sexuais que o homem tinha. Fuseli comentava abertamente com o grupo sobre seus interesses e seus casos amorosos, que envolviam homens e mulheres, e acreditava profundamente que mulheres deveriam viver seus desejos sexuais, expressando sua própria sexualidade.
Entretanto, conforme Wollstonecraft percebia que sua felicidade residia nas conversas com Fuseli — apesar de afirmar que o que tinham era uma paixão platônica, pois ele era casado —, mais o pintor recuava diante das conversas com a jovem. Os boatos que se espalharam era de que a esposa de Fuseli havia expulsado Mary de sua casa, mas essa versão da história foi posteriormente questionada por C. Kegan Paul, biógrafo de William Godwin, que viu as últimas cartas entre ambos, antes que estas fossem destruídas pelos descendentes vivos da autora.
O Pesadelo de Fuseli em Frankenstein
Além de ser uma pintura extremamente conhecida no período em que Mary Shelley vagava pela Europa e escrevia Frankenstein, ainda é muito provável que ela soubesse de algumas das histórias de sua mãe — entre elas, que ela conhecia o próprio Fuseli. Aparentemente, Fuseli e Godwin frequentavam os mesmos círculos, mesmo após a morte de Wollstonecraft. Não como amigos, mas como pessoas com interesses semelhantes.
A passagem que muitos estudiosos acreditam que evoca o quadro de Fuseli é já ao final do livro — que se, por algum motivo você, leitor, ainda não leu o livro Frankenstein, é melhor ter cuidado com spoilers daqui adiante —, onde Victor se encontra mais uma vez com a Criatura, que cumpre sua ameaça de encontrá-lo em sua noite de núpcias.
Victor se casa com Elizabeth mesmo depois de ter se negado a fazer uma companheira para a Criatura e de ter perdido seu melhor amigo, Clerval. Achando que poderia aplacar um pouco a tristeza de seu próprio pai, Victor então aceita se casar com Elizabeth o mais rápido possível, não compreendendo exatamente as palavras que a Criatura lhe disse. Furioso por ver seu criador festejando quando ele mesmo estava na miséria, a Criatura então volta seu ódio para Elizabeth.
Neste ponto, a narração conta como Elizabeth foi encontrada inerte em sua cama, inanimada, com suas feições distorcidas e pálidas, enquanto a Criatura a observava da janela. Na adaptação feita por James Whale em 1931, o quadro se torna ainda mais vivo e presente nessa passagem com a ajuda da direção do cineasta.
O filme Gothic, de Ken Russell, que trata da viagem dos Shelley para passar um tempo com Lord Byron, que resultou na criação de Frankenstein, também utiliza a imagem de O Pesadelo, de Fuseli. Seu pôster, por exemplo, é uma releitura da obra.
Frankenstein é uma obra única que bebeu de diversas inspirações de seu tempo. Mary Shelley, uma jovem que ansiava por conhecer tudo o que pudesse, reuniu as mais variadas fontes para construir uma história ímpar de ciência e horrores inimagináveis. Não podemos afirmar com certeza que O Pesadelo, de Fuseli, foi realmente utilizado na parte em questão, mas através de vários estudos, como os que constam no livro Frankenstein: Anatomia de Monstro, de Kathryn Harkup, podemos ter uma ideia de onde vieram tantos detalhes para a construção dessa obra tão singular.
Para deixar essa obra ainda mais especial, só com as ilustrações de um mestre da criação de monstros. Frankenstein: Monster Edition, com ilustrações de Bernie Wrightson, já está disponível em pré-venda no Site Oficial da DarkSide Books.