Que saudade das locadoras!

Não apenas um lugar onde alugávamos filmes, mas onde colecionamos memórias e concretizamos nosso amor pela sétima arte. Por que, afinal, as locadoras nos marcaram tanto?

Você, leitor, que cresceu nas décadas de 1980, 1990 ou 2000, se lembra da sensação de visitar uma locadora? Correr as mãos pelas estantes (às vezes um pouco empoeiradas), pegar as fitas de VHS e, mais tarde, os DVDs, escolher com cuidado — e muitas vezes por causa das imagens nas capas, dificilmente parando para ler a sinopse — qual seria o filme do fim de semana? A sensação de chegar em casa em uma tarde de sexta com a sacola recheada de filmes que seriam uma companhia constante pelos próximos dois dias, e que às vezes eram assistidos até duas ou três vezes no sábado e no domingo?

Essa nostalgia não é apenas saudosismo. A experiência de frequentar locadoras foi transformadora para algumas gerações. Não apenas um lugar onde íamos escolher filmes para levar pra casa, mas um momento de pré-socialização: pensávamos as escolhas de acordo com quem estaria conosco, ou se estaríamos sozinhos; aceitávamos, muitas vezes, os conselhos dos atendentes que, a depender do tempo que aquela locadora era frequentada, já eram velhos conhecidos; passávamos horas olhando capas e mais capas de filmes que muitas vezes nunca sequer tínhamos ouvido falar, e escolhíamos por pura afinidade: intuição, ou “meu santo bateu com essa capa aqui”, ou ainda “que capa asquerosa! Vou levar”.

Imagem: The New York Times [Bob Rowan/Progressive Image/Corbis]
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Foi um momento em que muitos de nós refinamos alguns gostos, conhecemos coisas novas, como bem conta Alexandre, estudioso do cinema de Hong Kong e editor de vídeo: “Tenho uma memória da infância indo à locadora com dois amigos, conversando pelo caminho inteiro sobre qual filme íamos alugar. Eles queriam um filme de ação, mas eu insistia em alugar o primeiro Warlock (a gente devia ter uns 8, 9 anos!). Quando chegamos lá, eu consegui convencer de irmos no estande dos filmes de terror, e a gente ficou naquela coisa hipnotizada pelas capas dos VHS. Era algo assombroso, mas delicioso ao mesmo tempo. Infelizmente não alugamos Warlock porque não tínhamos idade e saímos com algo genérico de ação, mas ainda assim guardo com maior carinho essa lembrança. Só fui ver, alugando, Warlock anos mais tarde, então em DVD!”.

E a gente ficou naquela coisa hipnotizada pelas capas dos VHS. Era algo assombroso, mas delicioso ao mesmo tempo

Quando a gerações mais novas nos ouvem relembrando esses tempos, podem achar que estamos apenas com saudades de um tempo que passou. Mas não é bem assim. A Macabra relembra um pouco do que foi conviver com o corredores cheios de filmes e a experiência da locadora. 

Warlock: O Demônio, de 1989, filme protagonizado por Julian Sands e dirigido por Steve Miner

Lembranças para recordar

O ato de frequentar locadoras foi especial. Nós, que crescemos nessa época, tivemos uma experiência que não vamos esquecer tão cedo. Ainda guardamos com carinho muitas dessas memórias. “Eu passei boa parte da minha adolescência enfiada em locadoras, sim. Tinha várias na minha cidade, e ir até elas era um dos momentos mais esperados da semana”, comenta Raquel, editora da Macabra e da DarkSide, que teve uma relação muito afetuosa e familiar com as locadoras desde cedo. “Uma vez por semana, saindo do colégio, eu e meu primo entrávamos em negociação pra saber qual filme a gente ia alugar na promoção. E aí chegava o fim de semana e tinha mais 3, 4 filmes para assistir com meus irmãos — era um programa muito coletivo, muito afetivo, e tenho uma lembrança muito maneira dessa época.”

Foto retirada do blog Science Video and Other Suspect Ruminations, da videolocadora Vulcan Video

Essas lembranças, por vezes, ajudaram a moldar quem somos hoje. A experiência de Queops Negronski não é tão diferente da de Raquel, apesar de ambos estarem em extremos opostos do Brasil — ele, tendo vivido no Nordeste, e ela, no Sul do país. Hoje participante assíduo como jurado em diversos festivais de terror pelo Brasil, além de estudioso do gênero, Queops guarda boas memórias da época em que frequentava locadoras. “Minhas primeiras memórias de vídeo locadora são de Paulo Afonso, na Bahia, onde passava férias e onde havia uma vasta quantidade de VHS e até mesmo Betamax(!!!) à disposição da clientela, e a maioria dos VHS eram piratas (eram fins da primeira metade dos anos 1980 e início da segunda). Como naquela época as discussões sobre qualidade de imagem eram inexistentes, pra mim todas as cópias eram excelentes.”

Foi mais tarde, já ao final dos anos 1980, que Queops teve mais acesso aos filmes em VHS, quando sua mãe comprou um videocassete e ele começou a frequentar a locadora em seu bairro, em Recife, Pernambuco. “Aí, sim, comecei a conhecer um monte de gente que adorava levar cinema pra casa, pessoas de todo tipo que apreciavam os mais diversos gêneros, e alguns até gostavam de terror. Mas se o preconceito com ele existe até hoje, imaginem naquele tempo! Essa falta de interesse do público acabava por me beneficiar, pois os terrores estavam sempre à disposição, fossem famosos ou desconhecidos e eu sempre saía feliz de lá. Mas sabem o mais curioso dessa época? Uma frase da dona da locadora, que ao me ver alugar Faça a Coisa Certa, de Spike Lee, pela enésima vez, me olhou nos olhos e disse ‘Você é a pessoa que mais aluga esse filme aqui na loja, quando não e ele, é filme de terror’. Carrego com orgulho essa memória até hoje.”

Imagem retirada do grupo público do Facebook The Video Store Back Rooms

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Este é um outro ponto que nos faz sentir saudades das locadoras: a facilidade de encontrarmos certos filmes. Se você é um fã de terror e costuma acompanhar algumas redes sociais, como Instagram e Pinterest, já deve ter notado como essa ligação com a mídia física é (e se torna cada vez mais) forte. Para nós, ainda mais do que para fãs de outros gêneros, é sempre mais difícil encontrarmos nossos filmes favoritos. Alguns nunca chegaram ou chegarão aos streamings. Então, recorremos aos velhos VHS e DVDs, que hoje se encontram abandonados em algum lugar por aí, esperando encontrar uma nova casa.

‘Você é a pessoa que mais aluga esse filme aqui na loja, quando não e ele, é filme de terror’. Carrego com orgulho essa memória até hoje

É engraçado lembrar que diversas vezes, antes da internet e dos DVDs, nós não tínhamos sequer acesso aos trailers dos filmes. Era realmente uma escolha intuitiva. Raquel comenta sobre essas escolhas: “A gente se permitia ser surpreendido. Os atendentes das locadoras já conheciam a gente e muitas vezes sugeriam coisas incríveis. Ou então lá estava eu vendo uma capa esquisita, curiosa, ou lendo alguma sinopse muito diferentona. Era um jeito muito especial de descobrir filmes — quase mágico. Bate até saudade de escolher filme dessa forma, porque tudo que a gente tinha era uma promessa contida ali na caixinha do filme — sem trailer pipocando a cada clique num catálogo infinito que, no fim das contas, mais cansa do que empolga. Andar pelas estantes, ter esse momento de parar, escolher, fazer listinha, trocar ideia com quem trabalhava lá… era um ritual. E era real”.

Bate até saudade de escolher filme dessa forma, porque tudo que a gente tinha era uma promessa contida ali na caixinha do filme

De volta ao analógico

Durante a pandemia que nos assolou até pouco tempo atrás, um processo começou a se desenvolver: cada vez mais pessoas se cansaram das redes sociais e do meio digital como um todo, buscando coisas que pudessem fazer fora de seus computadores. Não apenas muitos hobbies foram iniciados, como uma busca por esses objetos do passado, analógicos, tiveram um crescimento brusco. Câmeras de fotografia e o colecionismo de mídia física foram algumas dessas peças. 

Isso se deu por vários motivos. O sentimento saudosista que vinha, já, de alguns anos, com tantas produções emulando os anos 1980 e 1990, além desse cansaço com o digital, também pode ser listado como parte desse desejo de se voltar novamente ao meio analógico.

Foto de Nick Collins, que montou uma locadora em seu porão. Nick criou a conta Nostalgia Video, no instagram, para mostrar algumas fotos do projeto e compartilhar memes

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Depois que as coisas se normalizaram um pouco, após o período da pandemia, parte desse interesse permaneceu. Muitas pessoas seguem buscando e conhecendo cada vez mais sobre câmeras analógicas, e mesmo as digitais mais antigas, por exemplo, e com a mídia física isso também aconteceu. Pessoas que começaram suas coleções nesse período seguem firmes buscando filmes em sebos e na internet.

E isso, de certa forma, trouxe as locadoras para o centro do palco. Desde que elas começaram a desaparecer, lentamente, sendo substituídas pelos streamings, houve uma resistência. Antigos frequentadores, em sua maioria, sempre sentiram falta desse local que muitas vezes trouxe tantas boas memórias. E então, com esse boom do retorno ao analógico, outras pessoas passaram a se interessar por elas também — algumas delas das quais nem chegaram a frequentar esses lugares.

Get in, loser. Nós vamos à locadora!

Em matéria publicada no Estadão, em dezembro de 2023, traduzida do The Washington Post, alguns casos de sucesso são apresentados. No Condado de Los Angeles, por exemplo, em Burbank, a Be Kind Video segue aberta, firme, forte e prosperando ao atrair seus clientes com seu visual retrô e acolhedor. Como a matéria descreve, “As relações entre a loja e o cliente se tornaram surpreendentemente íntimas. Havia aquele que se escondia dentro da loja em um dia difícil porque se sentia seguro, ou o casal que se mudou para um apartamento próximo por causa da proximidade com a loja”. É esse sentimento que levou tantos de nós a nos sentirmos deslocados e abandonados com os fechamentos das locadoras.

Foto da locadora Be Kind Video

Ainda na matéria, é dito que “Vários clientes retornam semanalmente para examinar a seção dedicada ao terror da loja — a principal atração da Be Kind e o gênero com os fãs mais fervorosos de VHS, disse Matt Landsman, especialista em terror que dirige a programação da loja”. Somos, mesmo, um grande fã-clube.

Mas não é apenas nos Estados Unidos que esse fenômeno é observado. Em Divinópolis, por exemplo, a Video Yes, de Ricardo Carregal, permanece aberta e com um relacionamento íntimo com seus clientes, que cresceram na cidade e continuam frequentando o estabelecimento. Apontando novamente para a boa experiência de frequentar esses locais, Carregal, em matéria para a G1, comentou “Aqui é um lugar onde o cliente é bem atendido, é bem acolhido, é bem recebido. Não é só locar um filme, é também um momento de interação, de bate-papo”. Seu acervo, que tem mais de 10 mil DVDs, possui diversos títulos que não estão disponíveis em streaming, outro fator que contribui para que seus clientes o procurem.

Esse ponto também é apontado por Paulo Pereira, dono da Video Connection, no Copan, locadora aberta desde 1985 e que permanece em atividade. “As pessoas não acham os filmes nos streamings e acabam vindo para cá”, comenta Paulo em matéria para Metrópolis, datada de junho de 2024. Paulo ainda complementa que “Tenho recebido bastante alunos de faculdade que querem saber de filmes que eles não encontram em lugar nenhum”, mostrando que não são apenas pessoas que frequentaram as locadoras antigamente que retornaram aos velhos hábitos.

Foto da locadora Video Connection, retirada do site Metrópolis

De acordo com o artigo do jornal, ainda restam 4 locadoras em São Paulo. Seus acervos variam entre cerca de 15 mil a 6 mil filmes. São elas a Video Connection, localizada no Copan, com cerca de 14 mil títulos; a Charada Clube, na Vila Tolstoi, zona leste da capital, com cerca de 14 e 15 mil DVDs e de 2 a 3 mil VHS; a Eject Video, na Vila Clementino, com 11 mil títulos, e a Horus Vídeo Locadora, Vila da Saúde, com 6 mil filmes.

Como bem aponta Val Ramos, uma das donas da Horus Video Locadora, “Não é uma competição, mas é uma outra proposta. A gente ajuda o cliente a conhecer aquele filme que ele talvez nunca assistiria, ao invés de ficar procurando por horas. A plataforma tem o seu valor, mas a gente sabe que aquela quantidade de opções muitas vezes é uma ilusão. Você procura, procura, e não encontra nada”. 

Imagem de Joshua Olmsted, retirada de artigo do Medium de Jacob Waite

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É inegável que a internet e os streamings tenham facilitado e muito o acesso a alguns filmes. Hoje, é muito mais fácil encontrarmos filmes de décadas passadas, assistirmos um filme que talvez nunca tenha lançamento no Brasil, tudo a um controle ou a um mouse de distância. Mas sentimos falta do contato, da experiência, do sentimento de irmos até uma locadora, planejarmos com antecedência como seria aquele momento de nos sentarmos, colocarmos um filme na TV, quais as guloseimas que iríamos preparar. Ainda podemos fazer isso, mas é diferente. Perdemos a chance de parar e analisar e sentir as fitas e os DVDs em nossas mãos, de olhar para suas capas e, com calma, decidir o que levar — e, dessa forma, muitas vezes descobrir grandes obras, ou nos surpreendermos com filmes de baixíssimo orçamento, mas muito divertidos.

Não queremos abandonar os streamings, mas adoraríamos voltar a frequentar as locadoras. Essa experiência, tanto sentimental quanto sensorial, ajudou a formar o gosto de uma geração, e será sempre lembrada por nós com carinho. 

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.