O terror acompanha as mudanças sociais, culturais e políticas e, da mesma forma que cresce e se desenvolve com elas, também sofre com certos ideais de seu momento. É um terreno progressista, que abarca as diferenças e valoriza o que é transgressivo. Em algumas esferas, no entanto, também reproduz uma série de pensamentos conservadores de seus realizadores.
Produções culturais não são descoladas do contexto em que estão inseridas, e o terror não foge disso. Terreno fértil para ideias frescas, a cada ano, surgem mais diretoras e diretores competentes experimentando as narrativas. O público LGBTQIA+ também se sente cada vez mais acolhido, e por mais que tenhamos alguns críticos ferrenhos que preferem se manter presos a velhos e ultrapassados ideais, estamos conquistando cada dia novos espaços.
Um desses espaços são os festivais. Este ano, por exemplo, na 11ª edição do CineFantasy, tivemos uma série de atividades e mostras voltadas para realizadores negros e LGBTQIA+. Um grande passo, e que deve ganhar cada dia mais espaço.
E, chegando para sua primeira edição, teremos ainda este ano o Festival Grito Queer, idealizado por Ivandro Godoy e Nanda Barros. Godoy é escritor, fotógrafo e colunista de cinema de gênero. Já participou na produção de diversos festivais nacionais como o Cinefantasy, CineCaos, Festival do Boca do Inferno e Espantomania. Estudioso do subgênero “Horror Queer”, foi o responsável pela primeira exibição nacional de cinema queer no Panorama Horror Queer da quarta edição do festival Espantomania (2019). Atualmente escreve para os sites Boca do Inferno e Gore Boulevard. Já Barros é diretora de fotografia do selo Wicked Dolls e participante ativa de coletivos feministas e de diversidade sexual e de gênero em São Paulo. Matriarca, adepta da anarquia relacional e BDSMer, levantou a palavra QUEER como Assistente de Produção no Panorama Horror Queer da quarta edição do festival Espantomania (2019).
É o primeiro festival de cinema dedicado exclusivamente a filmes de gênero fantástico referentes ao horror queer (horror, thrillers, trash, gore, b-movies, fantasia, ficção científica) realizado em São Paulo, e conta com o júri de Wesley Gondim, Marcelo Carrard e Sladká Meduza. Sua primeira edição acontecerá de 25 a 31 de outubro de 2021, completamente online através da plataforma Cinebrac.
O festival está recebendo inscrições para curtas-metragens (com até 30 minutos de duração) e longas-metragens (com duração maior a 60 minutos) até o dia 31 de julho. Detalhes sobre as inscrições estão no regulamento disponível no site Grito Queer.
Fizemos uma entrevista com Ivandro e Nanda para que eles contassem um pouquinho dos planos e realizações desse projeto tão necessário e importante.
Entrevista Horror Queer
- Olá, pessoal! Agradecemos a oportunidade de fazer esta entrevista. Adoramos a proposta do festival e queremos muito que vocês aproveitem este espaço para falar como e por quê surgiu o Festival Queer de Cinema.
Nanda: Somos muito gratos pelo oportunidade em falar deste festival que tem sido um presente diante de tantas coisas difíceis que vêm acontecendo no país e no mundo. A ideia veio a partir de um reality show assistido em 2018 chamado Dragula em que (o Ivandro e eu) descobrimos diversas referências sobre o tema. Desde então partimos em busca de mais material relevante e percebemos que era algo muito complicado de encontrar em terras brasileiras, o que nos levou a acreditar que precisávamos emergir isso no país para que mais pessoas tivessem acesso e locais de exibição para suas obras de horror queer.
Por meio desta iniciativa introduzimos na quarta edição da Mostra Espantomania (2019) o Panorama Horror Queer, que visava apresentar trabalhos que mesclassem o horror sobrenatural ao horror cotidiano das comunidades LGBTQI+. Trazendo produções de diversos países, a seção foi super bem recebida pelo público e pela crítica, o que nos levou a produção de um festival inteiramente voltado à Diversidade de Gênero no cinema de horror/fantástico.
- Como vem sendo o processo de curadoria de conteúdo deste festival?
Ivandro: Lento, porém certeiro como um assassino slasher (risos). Estamos recebendo trabalhos de diversos países (Rússia, Egito, Islã e França, por exemplo), mas a cota de produtos brasileiros ainda está na dianteira com ótimos trabalhos. Um ponto que queria ressaltar é uma certa confusão dos inscritos (de todos os países) em introduzir o gênero “horror queer” homogeneizado nos trabalhos enviados. Muitos trabalhos ou só possuem o elemento “horror” ou somente o elemento “queer” em sua composição o que torna difícil a triagem para a seleção.
- Conhecemos a importância e o peso de um Festival Queer de Cinema — o primeiro em São Paulo —, ainda mais com o recorte do terror. Mas, para vocês, qual o sentimento de organizar esse projeto?
Nanda: O sentimento é de respeito e muito cuidado, pois entendemos que este é um local que envolve muitas nuances que devem ser consideradas. Todos os materiais enviados são escolhidos visando o local de fala da comunidade LGBTQI+ que constantemente é questionada e atacada pelo senso comum com suas regras que só cabem a um determinado grupo e que excluem os demais por sua estrutura diferenciada. O Festival Grito Queer vem para lembrar a todos que não existe só uma forma de se viver, amar, se relacionar etc.
- Dando uma olhada no site do festival, encontramos um material interessante sobre o horror queer através das décadas. Analisando esse material, o que vocês poderiam nos dizer sobre a relação do horror com o cinema queer?
Ivandro: O horror, de certa forma, sempre foi uma manifestação no cinema queer, apesar de apresentado na forma de subtextos. Desde a manifestação do Código Hays, introduzido na mídia entre 1930/1968 pelo MPPDA (Motion Picture Producers and Distributors of America) os “queers cinematográficos” foram empurrados para o underground, relegados a existir apenas no subtexto — e, na maioria das vezes, como vilões. A fim de obter histórias com cunho homossexual na tela, os cineastas foram obrigados a encontrar maneiras criativas de subverter o sistema trazendo alegorias sob a forma de criaturas sobrenaturais. Trabalhos iniciais da literatura gótica já continham um claro subtexto gay como O Monge (1796), de Matthew Gregory Lewis, e The Fatal Revenge (1807) e Melmoth the Wanderer (1820) de Charles Maturin. James Jenkins, da Valancourt Books, afirma que a explicação tradicional para a conexão gay/horror é que era impossível para eles escrever abertamente sobre temas homossexuais na época (ou talvez até expressá-las, uma vez que palavras como “gay” e “homossexual” não existiam), então eles começaram a sublinhá-los e expressá-los em formas mais aceitáveis, utilizando o meio de um gênero transgressor como a “ficção de horror”. Mais tarde veio a primeira vampira lésbica em Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu, e O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde, que chocou os leitores com seus personagens abertamente homossexuais.
Nos cinemas, o horror queer começou a se estabelecer como gênero em A Noiva de Frankenstein (1935), de James Whale, ou A Filha de Drácula (1936), de Lambert Hillyer, que são alguns de seus primeiros títulos importantes, e mostram comportamentos e questões homossexuais metaforicamente, evitando, assim, o rigoroso Código Hays. Somente a partir dos anos 1960, quando estouraram os primeiros movimentos sociais mais sólidos, que essas minorias começaram a ganhar maior representatividade e a criar suas próprias produções.
- Em tempos de COVID-19, quais desafios e conquistas surgiram ao montar o festival?
Nanda: Nosso maior desafio no começo foi a estrutura. Encontrar plataformas que pudessem exibir o festival não foi fácil, mas a galera do cinema underground sempre foi muito engajada em nos ajudar e isso é lindo. Por meio destas indicações encontramos em menos de um mês uma plataforma com boa colocação e ideias que é a CineBrac. Eu sempre apoiei a ideia de fazermos o festival online mesmo antes, na época da Mostra Espantomania (na qual realizamos o Panorama Horror Queer), mas em meados de 2019 o público preferia os festivais presenciais. Hoje em dia eu vejo que a aderência é muito maior online que presencial, principalmente para divulgação. O que mais estamos ganhando é gente bacana divulgando o festival que ainda está em tempos de inscrição até o dia 30 de julho.
- Como tem sido a receptividade da galera para com o festival e quais expectativas vocês nutrem nesta primeira edição?
Ivandro: Felizmente as expectativas estão acima da média. Trabalhos incríveis chegam todos os dias contando as mais fabulosas histórias do ponto de vista queer. A divulgação por meio de parceiros da internet também nos impressionou bastante, pois não acreditávamos (no começo) que o festival seria tão bem recebido pela mídia digital. Se o Grito Queer está alcançando esta grandiosidade é por causa dos amigos online que acreditam na força monstruosa desta ideia.
- Como o público pode ajudar a propagar o festival pela internet?
Nanda: Esta é a parte que mais me deixa feliz e realizada em estar organizando o festival. Muitas pessoas têm nos ajudado espalhando o link para inscrição por aí, páginas que sequer conhecíamos divulgando o release do festival, propagando a arte queer pelo máximo de locais possível e assim mostrando que existimos e queremos mostrar que também sabemos produzir filmes com a temática horror. Sinto que a galera entendeu a ideia do festival e está espalhando por aí. É isso que queremos, o #LGBTQI+ mostrando para que veio a este mundo. Na época do Espantomania eu sentia que tudo ficava muito no mesmo círculo de amizades, mas com o Grito Queer a ideia está sendo divulgada por si só. Eu cheguei a pensar que teria que passar dias divulgando o festival, mas isso não aconteceu. O festival está divulgando-se sozinho todos os dias graças ao apoio de parceiros maravilhosos que entenderam a causa introduzida na mostra.
- Abrir espaços seguros para troca de ideias e projetos é algo natural quando um festival surge com esse recorte tão especial. Vocês planejam estimular a produção autoral de conteúdo brasileiro para esta edição ou para as próximas?
Ivandro: Toda a ideia do festival visa a difusão deste subgênero nas plataformas de festivais em todo o país. Como o malvado Mr. Hyde, a vampira além-túmulo ou o animalesco Homem-Lobo, o gay e a lésbica dentro da sociedade heteronormativa pode estar tentando sair para atacar a própria fundação da sociedade, buscando infectar ou destruir não só o “mal” ao seu redor mas o próprio conceito patriarcal no qual a sociedade foi construída e cabe a nós, os cientistas loucos da sétima arte, abrirmos as “portas deste armário” e apresentar estas bestas de beleza selvagem e glamourosa para todo o mundo.
- Como vocês veem a importância de festivais e iniciativas como a de vocês para a visibilidade do horror queer? E como o público pode ajudar a estimular essa produção de maneira ativa?
Nanda: A importância para nós é gigantesca já que vivemos em uma sociedade heteronormativa que impõe gênero e sexualidade o tempo todo para todos desde criança: “você é menina, use essa roupa rosa” ou “você é menino, use essa roupa azul”, fazendo com que pessoas que não se encaixem nesse padrão sejam excluídas por não participarem do senso comum. Precisamos trazer esses temas para discussão e dar voz a todos que existem não somente aquele heteronormativo branco padrão cis, afinal nós existimos também e merecemos respeito e admiração. Todos podem nos ajudar divulgando os links para inscrição para que o festival chegue em mais pessoas. ” Ahh mas eu nem gosto disso!” … tudo bem, compartilhe, avise seus amigos que gostam do tema. Você não precisa necessariamente pertencer a comunidade LGBTQI+ para apreciar uma obra de arte queer, mas respeitar o local e entender que não somos todos iguais é uma ação social válida, pois somos todos humanos e podemos nos respeitar e apreciar mutuamente.
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