Existem dois elementos que permeiam boa parte dos medos ocidentais e, na maioria das vezes, estão interligados: o medo da morte e o medo que a religião provoca. O medo da morte nos faz questionar o que há no além, o que acontece quando morremos, como podemos lidar com o fim da nossa existência, como lidar com a desconfiança de que não existiremos depois daqui. E as religiões ajudam a trazer algum conforto com suas crenças, mas principalmente as religiões cristãs (que ocupam parte das casas do Ocidente), trabalha com o medo de que existe um céu (ou um paraíso, ou uma forma de retornar ao mundo dos vivos) se você for bom, e de que existe o inferno se você for mau, para ser punido pelas coisas erradas que fez por aqui. Esse conjunto de crenças alimenta muitos filmes de terror também.
A afirmação de que o terror se baseia no medo da morte pode até ser contestada, mas não deixa de trazer uma verdade: é um dos maiores medos humanos. E é essa a matéria da qual o terror lida, os medos humanos, as questões que muitas vezes nos deixam tão desconfortáveis que não conseguimos falar em voz alta, situações que nos fazem questionar o ambiente em que vivemos, ações que tomamos, mesmo sendo apenas espectadores.
Não é de se surpreender que o horror e elementos característicos religiosos possam compartilhar o mesmo trilho tantas vezes. Há algo de assustador em algumas religiões, na forma como ela pode liderar uma população, na forma como seus ídolos observam os atos daqueles que vivem neste planeta. E isso é um terreno fértil para a ficção de horror.
A religião auxilia no controle do mal. Cruzes são usadas para espantar vampiros, igrejas são territórios sagrados e oferecem proteção, a oração pode manter os espíritos longe, ou, quando já é tarde demais, é através de uma oração que um padre pode exorcizar uma garotinha. Os filmes de horror utilizam a temática religiosa porque ela serve, ela dialoga com o ser humano em algum nível.
Uma pesquisa Datafolha publicada em janeiro de 2020 aponta que 50% dos brasileiros são católicos e 31%, evangélicos. Ainda é muito comum vermos os símbolos religiosos cristãos espalhados por comércios e residências, e não são raras as aulas de religião do colégio que falam muito mais do cristianismo. Tradição antiga, vinda com os portugueses, a fé católica também foi responsável por anos de silenciamento de outras religiões, perseguições, e outras tantas situações que se mesclam com a história do país.
Independentemente de suas crenças, os filmes de terror estão permeados por elementos de religiões ocidentais, em grande parte os católicos. Pensando nisso, reunimos alguns filmes para você se arrepiar e desfrutar de algumas grandes referências do horror em seu encontro com a religião.
O Bebê de Rosemary
Rosemary’s Baby, 1968 // Um dos grandes clássicos do terror, dirigido por Roman Polanski, O Bebê de Rosemary tem por base a loucura, o desamparo e a descrença. Ao se mudarem para um conjunto de apartamente, o casal Rosemary (Mia Farrow) e Guy (John Cassavetes) logo são abordados por vários vizinhos que demonstram uma amizade excessiva com eles. São muito solícitos, sempre por perto, até um pouco invasivos. Quando o casal resolve ter um bebê, estranhos eventos começam a acontecer, e Rosemary demora a descobrir o que está realmente acontecendo: seus vizinhos tão amigos fazem parte de um culto que quer trazer o anticristo para o mundo, se utilizando de Rosemary como barriga de aluguel. Por todo o período do filme nos perguntamos se Rosemary não está realmente louca.
A Profecia
The Omen, 1976 // Ainda nos mantendo no tema “criança anticristo”, talvez um dos nomes que saltem à mente seja A Profecia, dirigido por Richard Donner. Nele, o casal Robert (Gregory Peck) e Katherine Thorn (Lee Remick) são extremamente felizes e bem sucedidos. Robert tem um alto cargo no governo, são felizes, tem dinheiro, o casamento vai bem, mas eles querem uma criança. E tudo isso é posto em cheque quando Katherine dá à luz um bebê sem vida. Completamente desesperado, um padre se aproxima de Robert para que ele aceite um bebê saudável como filho. Sem contar para a esposa, Robert aceita, mas é aí que as coisas começam a desandar na vida de ambos e de todos ao redor. Afinal, é dito que o Diabo se aproveita daqueles bem aventurados para os testes. Além disso, é indiscutivelmente esperto dar a um homem de alto escalão do governo, um político que detém tanto poder, uma criança que pode abrir os caminhos do Diabo no mundo. Muito do tema religião é questionado durante o filme, que tem cenas inesquecíveis e Harvey Stephens, o jovem ator que interpreta a cria de Satã, é um excelente ator.
Príncipe das Sombras
Prince of Darkness, 1987 // Dirigido pelo grande mestre John Carpenter, Príncipe das Sombras nos apresenta um tipo meio diferente de anticristo. Um grupo de pesquisadores descobre um estranho cilindro antigo, contendo um líquido verde, em uma igreja antiga. O cilindro ficava sob a posse do antigo padre do local, mas após sua morte, acabou sendo entregue para a equipe. Eles acabam descobrindo que o líquido contém a essência do próprio Satã, e que pode liberar seu pai, uma espécie de Anti-Deus. Caso caia nas mãos erradas, pode ser o fim do mundo como o conhecemos. O filme faz parte do que é considerada a “Trilogia do Apocalipse de John Carpenter”, composta pelos filmes O Enigma de Outro Mundo e À Beira da Loucura.
O Exorcista
The Exorcist, 1973 // Reagan pode até não ser o anticristo, mas é uma garotinha aterrorizante que, por azar, acabou caindo nas mãos de um demônio. Dirigido por William Friedkin, baseado no livro de William Peter Blatty, O Exorcista conta a história de Reagan (Linda Blair), uma garotinha que foi possuída pelo demônio Pazuzu. Enquanto isso, um padre está lutando para manter sua fé após a morte de sua mão. Se unindo a outros dois sacerdotes, eles farão o possível para livrar a alma dessa garota e ajudar uma mãe desesperada. Um dos grandes filmes a lidar com o elemento cristão de forma tão concisa, várias das características da religião estão presentes: o auto sacrifício, a fé que pode transformar a realidade, além de toda a batalha ser uma questão sobre almas, aquelas que vencem e aquelas que perdem. O Exorcista é um dos filmes que melhor lida com o tema e o incorpora em sua narrativa, e parte disso se dá às várias pesquisas feitas tanto por William Peter Blatty como por Friedkin.
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O Exorcismo de Emily Rose
The Exorcism of Emily Rose, 2005 // Dirigido por Scott Derrickson, o filme é baseado levemente no caso de Anneliese Michel, que passou por um exorcismo feito pela Igreja Católica pouco antes de sua morte. No filme, um advogado começa a cuidar do caso do Padre Moore (Tom Wilkinson), que realizou o exorcismo de Emily Rose (Jennifer Carpenter) pouco antes de sua morte, mas se alega inocente. Durante o julgamento, vários médicos afirmam que Rose sofria de esquizofrenia e epilepsia. Deixando a escola e retornando para a casa dos pais, Rose começa com o tratamento com remédios para seu estado, mas quando não obtém melhoras, seus pais chamam o Padre Moore, que afirma que ela está possuída por um demônio. Entretanto, o procedimento falha, e Moore atribui a isso os remédios que Rose estava tomando. O filme dialoga com a velha briga entre religião e ciência, afirmando que Rose tinha uma condição que médica que precisava ser tratada contra um padre que afirmava ser um demônio. Hoje muitos questionam a história real de Anneliese Michel, como um caso de negligência. Ainda hoje, entretanto, é um dos filmes mais comentados quando o assunto é exorcismos.
O Segredo do Bosque dos Sonhos
Non si sevizia un paperino, 1972 // Conhecemos os filmes de Lucio Fulci com zumbis e seus giallos, mas as vezes esquecemos de mencionar algumas outras incursões que o diretor teve no gênero. O Segredo do Bosque dos Sonhos tem algumas semelhantes com O Homem de Palha, de 1973. No filme de Fulci, um jornalista vai até uma pequena aldeia, com uma população extremamente supersticiosa, onde crianças estão sendo assassinadas. Contando com a ajuda de uma jovem, vários suspeitos são investigados, criando uma atmosfera de paranoia em que todos podem estar envolvidos nas mortes. Por fim, descobre-se que quem está realizando esses “sacrifícios” é o sacerdote do local, para que as crianças permaneçam inocentes não sejam uma decepção para Deus. Mais um dos exemplos de que a religião pode ser um pouquinho perigosa quando cega.
Anjos Rebeldes
The Prophecy, 1995 // Dirigido por Gregory Widen e com algumas sequências um pouco questionáveis, Anjos Rebeldes conta a história de um policial, que antes de entrar para a Academia de Polícia iria se tornar padre, mas perdeu sua fé, e acaba entrando em uma guerra entre anjos. Um deles, Gabriel (Christopher Walken), não aceita que Deus tenha dado alma para os humanos, e enquanto essa guerra acontecer, as almas falecidas não podem ir para o céu ou o inferno. Gabriel então aproveita o momento para escravizar alguns humanos recém-falecidos e construir seu exército. Outros anjos decidem fazer com que Gabriel não consiga o que deseja, e uma batalha em campo terreno começa. Não é propriamente um filme de terror, mas não poderíamos deixar de encaixá-lo na lista.
O Advogado do Diabo
The Devil’s Advocate, 1997 // Quando o próprio demônio resolve colocar suas garrinhas de fora e demonstrar que os humanos não são tão bons assim, é melhor sentar que lá vem briga. Em O Advogado do Diabo, dirigido por Taylor Hackford, somos apresentados ao advogado Kevin Lomax (Keanu Reeves), que nunca perdeu um caso. Ele é procurado e contratado por John Milton (Al Pacino), para trabalhar em sua firma de advocacia em Nova York. Milton dá a Lomax um salário muito maior e promessas de um futuro brilhante, mas as coisas não vão tão bem quanto ele queria. Sua mãe, Alice Lomax (Judith Ivey), uma religiosa fervorosa, não acredita que esse sucesso todos esteja fazendo bem ao filho. Enquanto isso, a esposa de Kevin, Mary Ann (Charlize Theron) passa a se sentir deprimida e ter visões horríveis. Como nem tudo que reluz é ouro, podemos presumir onde o filme nos leva. O filme tem um ambiente de tensão criado especialmente pela figura de Al Pacino, que sustenta seu papel de forma elegante do começo ao fim.
Constantine
Constantine, 2005 // Dirigido por Francis Lawrence, o filme é uma adaptação do personagem da DC Comics de mesmo nome, protagonista do quadrinho Hellblazer. E independente de ser ou não uma boa adaptação, Constantine é um excelente filme. John Constantine (Keanu Reeves) é um caçador de monstros e espíritos e tudo de anormal que ponha em risco a balança terrena. Em meio a uma de suas caçadas, ele acaba percebendo que há algo de errado com o equilíbrio e os acordos dos anjos e demônios. Se unindo com a policial Angela (Rachel Weisz), que perdeu a irmã gêmea recentemente e é uma chave fundamental para que Constantine descubra o que está acontecendo, ambos procuram respostas e acabam sendo levados a uma guerra que já dura há muitos séculos. O filme ainda conta com Tilda Swinton como anjo Gabriel e Peter Stormare como Lúcifer.
Stigmata
Stigmata, 1999 // Dirigido por Rupert Wainwright, o filme conta a história de uma jovem que passou a sofrer as mesmas chagas de Cristo. Andrew Kiernan (Gabriel Byrne), um padre, é chamado até uma cidadezinha no Brasil para investigar uma estátua que, supostamente, começou a chorar lágrimas de sangue, assim que o antigo pároco do local morreu. Enquanto Kiernan está no local, um jovem rouba um crucifico e o vende para uma turista, que o envia de presente para sua filha, a cabeleireira Frankie Paige (Patricia Arquette). Entretanto, após alguns dias, Paige passa a sofrer os mesmos martírios que Jesus sofreu, os estigmas de Cristo, uma história famosa para a religião católica. Seus pulsos ficam marcados, aparecem-lhe machucados como os de Jesus, entre outros. O filme, além de trabalhar a tensão e a temática religiosa, ainda utiliza sua narrativa para denunciar alguns possíveis segredos da Igreja Católica.
Mártires
Martyrs, 2008 // Uma das maiores inspirações para Pascal Laugier e seu filme de 2008 foram os escândalos e abusos noticiados sobre a Igreja Católica. Mártires se tornou, desde então, um dos filmes mais aclamados e inquietantes dos últimos anos. No filme, Lucie Jurin (Mylène Jampanoï) é uma jovem que busca vingança de um grupo que a torturou e abusou dela quando criança. O grupo procura descobrir o que há após a morte, forçando pessoas até seus limites, transformando-os em mártires, para que eles atinjam certo nível de consciência e dor. O filme tem algumas cenas bastante cruéis e momentos de muita aflição, não sendo um dos filmes mais fáceis da lista. Entretanto, é uma excelente obra que merece reconhecimento e trata de um tema complicado, que é a busca de conhecimento religioso através da dor. O filme recebeu um remake norte-americano em 2015.
Horror em Amityville
The Amityville Horror, 1979 // Baseado em uma suposta história real, que deu origem a um livro escrito por Jay Anson, o filme é dirigido por Stuart Rosenberg e conta a história da Família Lutz, que deu o azar de comprar uma linda casa em que, aparentemente, um massacre havia ocorrido. George (James Brolin) e Kathy Lutz (Margot Kidder) se mudaram com seus três filhos para uma casa em Long Island, mas logo coisas terríveis começaram a acontecer no local, criando um clima de paranoia que iria desaguar na completa loucura do patriarca da família. O filme teve algumas sequências, além de vários remakes. É uma das histórias mais conhecidas de casas assombradas dos Estados Unidos, que levou até os investigadores Lorraine e Ed Warren ao local.
O universo de Invocação do Mal
Invocação do Mal, 2013; Annabelle, 2014; A Freira, 2018; e outros // Um universo grande e complexo que traz várias ligações entre si e com a temática religiosa. Os filmes principais, Invocação do Mal e Invocação do Mal 2 dirigidos por James Wan, e o ainda não lançado Invocação do Mal 3, que está sendo dirigido por Michael Chaves, acompanham algumas das investigações mais conhecidas do casal Ed e Lorraine Warren, vividos no cinema por Patrick Wilson e Vera Farmiga. Os filmes apresentam exorcismos e situações sobrenaturais, além da presença da própria Igreja Católica, que se envolveu em muitos dos casos do casal.
Em seguida temos os spin-offs, que foram produzidos graças ao grande sucesso dos filmes principais. Annabelle, Annabelle 2: A Criação do Mal e Annabelle 3: De Volta para Casa são filmes que tem ligação direta com Invocação do Mal, com a boneca já tendo aparecido em alguns momentos dos filmes principais. Estamos falando de uma boneca possuída por um espírito, que conta com padres e elementos católicos para ser parada de cometer suas crueldades. O segundo filme, inclusive, se passa em um orfanato católico.
O tema retorna nos outros filmes que estão inclusos no universo, como A Freira e A Maldição da Chorona. Em A Freira, lidamos com a morte de uma jovem freira e as investigações por conta de um padre, que tem um passado bastante obscuro, e uma noviça que está prestes a encarar seus votos eternos. Em A Maldição da Chorona, um padre precisa ajudar uma família que está sendo alvo de uma entidade maligna conhecida por destruir lares atacando as crianças e as mães.
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