Se você viveu entre os anos 1990 e início dos anos 2000 deve se lembrar de Coragem, o Cão Covarde, talvez o desenho para crianças mais assustador já criado até hoje.
Em seu piloto, Eustácio come ovos alienígenas e se transforma em uma fera híbrida, meio homem e meio galinha, e quase transforma Muriel, sua pobre esposa, em uma criatura demoníaca se o cachorro rosa da família não entrasse no cômodo com uma arma laser e o tivesse detido. Estranho, não é? O episódio piloto foi escrito e dirigido por John R. Dilworth, dono do estúdio Stretch Films, que ganhou fama internacional após lançar um curta de animação em 1995, chamado The Dirdy Birdy, uma bizarra história de amor entre um pássaro amarelo e um gato azul.
O processo para The Dirdy Birdy foi caro e demorado, e Dilworth quase faliu. Mas, graças ao reconhecimento do curta, Dilworth conseguiu uma reunião com o presidente da Companhia Hanna-Barbera Cartoons da época, Fred Seibert. Dilworth então apresentou sua ideia: um curta animado sobre um casal de idosos, uma galinha alienígena e o cachorro de olhos arregalados do casal. Seibert aceitou financiar o curta, que recebeu o nome de A Viagem do Frango Espacial. O curta animado foi um sucesso e acabou sendo nomeado na categoria correspondente para o Oscar de 1996. Apesar de ter perdido para um curta de Wallace e Gromit, o trabalho de Dilworth chamou a atenção de uma executiva da Cartoon Network, Linda Simensky, que resolveu trazer a atração para a emissora.
E assim começava o legado de terror e pesadelos infantis que se tornou Coragem, o Cão Covarde. Estreando em 1999 e com seu último episódio indo ao ar em 2002, com quatro temporadas ao todo, muitas reprises e vários episódios passados aleatoriamente por emissoras de TV, Coragem se tornou um fenômeno e esteve presente em muitas manhãs, tardes e noites, em diversos países.
Os três principais personagens da animação são Muriel, a típica figura de uma avó, com seu avental e suas galochas, sempre amável e muitas vezes bastante inocente; Eustácio, o oposto de Muriel, um homem ranzinza e fechado; e Coragem, o cachorrinho do casal, assustado, medroso e bastante nervoso. Dilworth se baseou em uma senhora escocesa para criar Muriel, e telefonou para ela algumas vezes durante a criação do desenho. Já Eustácio, Dilworth afirma não ter pensado em ninguém exatamente, mas diz também que a figura se tornou popular ao longo dos anos e facilmente reconhecível: um homem de meia idade, fechado, conservador. Os três vivem na cidade fictícia de Lugar Nenhum, no Kansas. O que se repete pela maioria dos episódios é que Muriel e Eustácio acabam entrando em perigo e Coragem está lá para salvá-los.
Naquele momento, a chamada “era de ouro” da Cartoon Network, os desenhos mais consumidos eram Johnny Bravo, Laboratório de Dexter e As Meninas Superpoderosas, então é de se imaginar o espanto quando Coragem foi ao ar. O primeiro episódio após o piloto, chamado “A Night at the Katz Motel/Cajun Granny Stew” apresenta criaturas aracnídeas carnívoras que estão prestes a se alimentar de Muriel e Eustácio, mas Coragem, como sempre, salva o dia.
Dilworth afirma que colocou muito do que ele gosta no episódio, algo que se seguiria por todo o restante da produção. Nesse episódio de estreia, que até aquele momento foi o episódio de estreia de maior audiência na história da emissora, existem referências a Salvador Dali, Tex Avery, pessoas que se comportam como animais e animais que se comportam como pessoas, e uma forte expressão de amor e companheirismo apresentada pelo bordão de Coragem: “as coisas que faço por amor”.
Com uma equipe de 100 pessoas, o desenho permaneceu no ar seguindo a fórmula mencionada: problemas assustadores para Muriel e Eustácio, e mesmo que Coragem seja um dos cães mais covardes da televisão, ele estava lá para salvá-los — ou, para salvar Muriel, que realmente era boa com ele e o salvou do abandono quando ainda era um filhote. Essa fórmula rendeu episódios aterrorizantes para a audiência que assistia. Em um desses episódios, por exemplo, na primeira temporada, e com uma referência bastante clara ao filme O Exorcista, de 1973, Muriel é possuída por um demônio. Muriel e Eustácio já estiveram em diversas situações horríveis, com canibais atrás deles, demônios, alienígenas, hipnotizadores e até suas próprias sombras que, vez ou outra, estavam contra eles.
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Como afirma um artigo no site Decider, talvez uma das coisas mais impressionantes do desenho seja a forma como ele trata o horror. Ele utiliza várias convenções do gênero e vários de seus elementos, muitas vezes ao mesmo tempo, com consciência de criação de medo. Não somente, a animação utiliza também várias técnicas juntas: as vezes o traço comum do desenho, as vezes uma mistura com ilustração realista, as vezes até imagens reais durante os episódios.
No episódio de número doze da segunda temporada, “The House of Discontent”, por exemplo, o vilão da história é uma cabeça humana branca e flutuante.
Já um dos episódios que aparecem na maioria das listas de “top 10 episódios aterrorizantes” do desenho, temos o episódio treze da primeira temporada, “King Ramses’ Curse”. Não tanto pelo plot do episódio, mas muito pelo estilo de animação utilizada para criar o vilão: um CGI estranho, com uma figura assustadora e, para piorar, acrescentaram um tipo de eco na voz do personagem.
Em outro episódio inesquecível, já na quarta temporada, Coragem precisa lidar com uma aparição estranha, vestida com um manto branco e com uma máscara. O elemento de estranhamento na figura é a própria máscara, que não combina com o cenário ou com a animação ao todo, dando um sentimento de deslocamento do personagem e causando ainda mais estranheza ao desenho.
Dilworth trabalhou muito bem a ideia de terror no desenho que criou, capaz de ainda hoje causar medo e desconforto naqueles que assistem aos episódios.
Em 2018 foi anunciado um possível reboot da série, servindo como prelúdio para a série de 1999, chamada Antes de Coragem, para o canal Boomerang. De acordo com o site do canal Syfy, Dilworth afirmou estar tocado por todo o amor que os fãs tem pelo desenho e pediu para que todos ficassem de olho para as novidades. Até então, não houveram atualizações do andamento do projeto.
O interesse pelo terror pode surgir de muitas forma. Em grande parte das vezes, surge ainda na infância, seja assistindo a filmes que “são proibidos” para a idade, seja assistindo desenhos animados como Coragem, O Cão Covarde ou Scooby-Doo. Coragem sem dúvida foi responsável por uma leva desses fãs, e é com carinho (e medo) que relembramos a trajetória da animação.
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