Você pode ter visto Alan Smithee escrito por aí e não ter ligado o nome à pessoa. E isso é muito normal, porque, na verdade, ele não pertence a uma pessoa — ele pertence a várias. Alan Smithee, ou ainda Allen Smithee, é um pseudônimo usado por alguns diretores que não gostaram do resultado final de seus filmes, ou quando outros diretores foram envolvidos e os créditos acabam ficando confusos.
Mas, como assim?
Bom, a indústria do cinema é complexa. Nem sempre os diretores têm a sua liberdade criativa apoiada por estúdios, ou mesmo chegam a participar dos últimos cortes — as edições finais — de seus próprios filmes. Isso já gerou muita encrenca e confusão, como em boa parte das franquias de slashers onde há uma irregularidade gritante de qualidade. Isso é abordado, por exemplo, algumas vezes no livro Halloween: O Legado de Michael Myers, de Dustin McNeill e Travis Mullins, onde o estúdio e os produtores constantemente interferiram no caminho que a história de Myers e Laurie Strode iriam parar. Apesar da franquia não ter nenhuma obra de “Alan Smithee”, sabemos que ela sofreu e muito com falta de liberdade criativa.
Muitas vezes, também, mais de um cineasta é alçado à cadeira de diretor. Nem sempre as delimitações de ideias criativas são bem delineadas. Até hoje, por exemplo, há uma discussão ferrenha de que Spielberg foi o verdadeiro diretor de Poltergeist, o que já trouxe uma série de debates sobre a produção do longa. Em alguns desses casos, também, Alan Smithee é evocado para suprimir possíveis problemas com as associações de diretores e roteiristas.
A história do pseudônimo
A DGA — a Directors Guild of America, ou Associação dos Diretores da América — tem regras bastante firmes sobre seus associados. Até 1968, por exemplo, os diretores não podiam ser creditados com pseudônimos. Tecnicamente, isso faria com que os produtores não forçassem os diretores a assumirem outros nomes, ou mesmo que a força criativa desses diretores não fosse posta em cheque. Mas a gente sabe que as coisas não funcionam exatamente assim. São muitas forças criativas atuando ao mesmo tempo, em uma queda de braço intensa, para que ideias prevaleçam nessas produções.
Mas muita coisa mudou durante a produção do filme Só Matando, de 1969. Durante as filmagens, o ator Richard Widmark, protagonista do longa, estava descontente com o trabalho do diretor original, Robert Totten, e mexeu seus pauzinhos para que outro diretor assumisse a cadeira. O trabalho caiu nas mãos de Don Siegel — que nós conhecemos principalmente pelo trabalho em Vampiros de Almas, a primeira adaptação do livro Invasores de Corpos, de Jack Finney.
Siegel também não estava contente com essa produção. Ele estimou ter trabalhado em Só Matando por uns nove ou dez dias, enquanto Totten trabalhou em vinte e cinco dias da produção. Além disso, Widmark comandava a maior parte dos trabalhos, não deixando que as outras mentes criativas fizessem seus serviços. Siegel, então, não quis assumir o crédito pelo filme, e em uma reunião da DGA, depois de ouvirem as alegações, ficou-se decidido que o longa não representava a visão de nenhum dos dois diretores.
Alan Smithee foi um nome que, de acordo com a DGA, não seria confundido com outros nomes que poderiam existir de verdade. A primeira escolha seria Al Smith, mas era um nome muito comum. No momento de lançamento de Só Matando, quando as críticas começaram a sair, ninguém fazia ideia de quem seria esse “diretor”. Roger Ebert, um dos maiores críticos de cinema, elogiou a produção e disse que “O diretor Allen Smithee, um nome que não conheço, permite que sua história se desenrole naturalmente”.
Alan Smithee no terror
Sendo um gênero tão conturbado, onde todo mundo quer botar defeito e meter o nariz, não era de se estranhar que o terror também tivesse suas pérolas Alansmithianas. A Macabra lista a seguir seis filmes de terror (e um sci-fi) em que Alan Smithee foi utilizado para reparar tristezas nas carreiras de diretores.
Maniac Cop 3: O Distintivo do Silêncio
Maniac Cop 3: Badge of Silence, 1992 // Maniac Cop é uma franquia de razoável sucesso no meio slasher underground. Apesar de nunca ter conquistado o sucesso de um Sexta-Feira 13 ou A Hora do Pesadelo, tem seu grupo de fãs fiéis. Quando Maniac Cop 3 estava em produção, as coisas estavam complicadas no set. No primeiro filme, um assassino vestido de policial, chamado Matt Cordell (Robert Z’Dar), começa a assassinar pessoas inocentes em Nova York. Nesta sequência, um padre, praticando um ritual voodoo, acaba trazendo de volta dos mortos Cordell, que retoma sua sede assassina.
Originalmente, no roteiro de O Distintivo do Silêncio, um investigador negro seria o protagonista e investigaria os assassinatos de Cordell. Enquanto William Lustig, tecnicamente o diretor do filme, estava procurando locações e atores, aparentemente um dos distribuidores japoneses afirmou que não queria um protagonista negro no filme, e sugeriu o nome de Robert Davi, que foi escalado para o papel, mesmo contra a vontade de Lustig. Além disso, de acordo com o cineasta, o roteiro de Larry Cohen não fazia sentido, mas o roteirista se negou a fazer as alterações e cenas adicionais. Ficou a cargo de Lustig cortar e improvisar novas cenas, e foi nesse momento que ele decidiu se mandar do projeto. Quem acabou terminando as gravações foi o produtor Joel Soisson, mas a direção acabou caindo no colo de Alan Smithee.
Student Bodies
Student Bodies, 1981 // Muitos acreditam que Student Bodies foi o primeiro filme a fazer uma paródia do subgênero slasher, tornando ele o avô de filmes como O Segredo da Cabana (2011) e Tucker e Dale Contra o Mal (2010). No filme, um assassino conhecido como “The Breather” — porque, sempre que ele vai cometer um assassinato, a respiração dele se torna ruidosa — tem perseguido estudantes e professores no colégio Lamab. Cada vez que uma morte acontece, uma “contagem de corpos” aparece na tela.
Student Bodies, ao contrário de Maniac Cop, não teve nenhuma briga cabeluda envolvendo os membros da equipe criativa. O diretor Mickey Rose escreveu e dirigiu o filme, com alguns materiais adicionais de Jerry Belson, e Michael Ritchie foi levado ao set como produtor para oferecer ajuda a Rose se ele precisasse. Mas, conta a lenda, que Ritchie foi o verdadeiro corroteirista e codiretor da produção. Para evitar que a WGA — a Writers Guild of America, ou Associação de Roteiristas da América — visse isso como um problema, o crédito de Ritchie foi removido e o Alan Smithee foi acrescentado.
Os Pássaros 2
The Birds II: Land’s End, 1994 // Você sabia que Os Pássaros ganhou uma continuação no começo dos anos 1990? Não? Não precisa se sentir mal. A maioria dos fãs de terror não sabem desse fato — e, os que sabem, preferem esquecer. Para que macular a imagem de um clássico hitchcockiano com uma sequência obscura noventista, não é? No filme, um biólogo e sua família se mudam para uma ilha quando pássaros começam a atacá-los. A grande Tippi Hedren, protagonista do primeiro filme, retornou para a sequência em um novo personagem — mas depois ela admitiu estar envergonhada de seu envolvimento na produção.
Tecnicamente, o filme foi dirigido por Rick Rosenthal, conhecido especialmente por seu envolvimento na franquia Halloween, tendo dirigido o segundo filme, de 1981. Não sabemos exatamente o que levou Rosenthal a querer apagar seu nome da produção — bom, sabemos sim —, mas a maioria dos críticos, ao assistirem o filme, já sentiram uma forte energia negativa emanando dele ao ler que tinha sido dirigido por Alan Smithee. Esperamos que algum dia alguém descubra qual foi a tragédia envolvida na produção para esse crédito removido.
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Hellraiser IV: Herança Maldita
Hellraiser: Bloodline, 1996 // Hellraiser, infelizmente, é uma das franquias mais irregulares do terror. Uma excelente história de base, saída da mente do grande artista Clive Barker, foi injustamente tratada nas mãos dos produtores. Em Herança Maldita, o que era uma boa oportunidade de contar um pouco mais sobre a criação da Configuração do Lamento, se tornou em uma imensa briga nos bastidores. A história do filme acompanha algumas gerações de Lemarchand tentando destruir a caixa quebra-cabeça.
O roteiro inicial foi concebido por Barker e Peter Atkins, e tudo corria bem Kevin Yagher foi chamado para dirigir, e apesar de não se sentir muito confortável com a ideia, aceitou. O trabalho ia bem, tudo estava correndo como o planejado, até o momento que os produtores insistiram que queria ver mais o Pinhead em tela. A ideia inicial era se concentrar na história da Configuração do Lamento e dos Lemarchand, mas, pelo visto, a produção tinha outros planos. Yagher se sentiu muito insatisfeito com os rumos da produção e retirou seu nome dos créditos de diretor, tornando Herança Maldita mais uma vítima de Alan Smithee. Por curiosidade, o quarto filme de Hellraiser foi o último filme da franquia a ser exibido nos cinemas — os outros lançamentos foram direto para locação e compra.
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A Árvore da Maldição
The Guardian, 1990 // William Friedkin é constantemente associado ao seu trabalho em O Exorcista, mas a maioria de seu trabalho foi nos gêneros de ação e drama. Então, foi um grande rebuliço quando ele foi anunciado como diretor deste projeto, já que era seu primeiro trabalho no gênero desde o clássico de 1973. Originalmente, o filme seria dirigido por Sam Raimi, que negou o convite para dirigir Darkman: Vingança sem Rosto — e, leitores, que sorte a dele. Em A Árvore da Maldição, um casal com um bebê recém-nascido não sabe o perigo que corre quando contratam uma babá que, na verdade, é uma entidade maligna.
A fonte para A Árvore da Maldição foi o livro The Nanny, de Dan Greenburg, sobre uma babá que sequestra crianças. De início, quando Raimi ainda estava ligado ao projeto, o filme seria um thriller. Quando Friedkin assumiu, conta-se que ele fez uma série de mudanças no roteiro. Ao longo da produção, mais mudanças foram feitas, e enquanto o filme estava gravado, o roteiro estava sendo alterado. Sabemos como isso pode afetar um filme. Enquanto Friedkin brigava contra as ideias do roteirista Stephen Volk — que teve um colapso nervoso e abandonou o filme —, a produção virou uma colcha de retalhos estranha. Roger Ebert, o crítico, colocou o filme em sua lista de “mais odiados”. Depois do corte feito para a TV a cabo, Friedkin resolveu retirar seu nome da produção.
No Limite da Realidade
Twilight Zone: The Movie, 1983 // A série Além da Imaginação, ou Twilight Zone, é bastante conhecida. Criada em 1959 por Rod Serling, seus episódios contavam com histórias de terror e ficção científica, com grandes roteiros que lidavam com dilemas morais da mente humana, além de seu relacionamento com a tecnologia de todos os tipos. Ao longo dos anos, três revivals foram feitos da série — entre os anos 1985 e 1989, apresentado por Charles Aidman; entre 2002 e 2003 apresentada por Forest Whitaker; e entre 2019 e 2020 por Jordan Peele. E, além desses revivals, tivemos o filme No Limite da Realidade.
Na direção estavam nomes de peso como Joe Dante, John Landis, George Miller e Steven Spielberg, cada um dirigindo um segmento do filme antológico, mas a produção foi marcada por uma tragédia. O segmento de Landis, “Time Out”, foi responsável pela morte do ator Vic Morrow e duas crianças chinesas, Myca Dinh Le e Renee Shin-Yi Chen. A contratação das duas crianças, inclusive, foi feita contra as leis de atuação com crianças, que determinavam que atores infantis não poderiam gravar cenas à noite ou próximas de explosões. Durante o julgamento, Landis negou sua culpa, mas afirmou que realmente a contratação estava “errada”. Spielberg ficou enojado com a situação e com a forma como Landis lidou com ela que encerrou sua amizade de anos com o cineasta, afirmando que nenhum filme valia a pena morrer. E, outra pessoa enojada, foi o segundo diretor/diretor assistente da produção, Anderson House, que pediu que seu nome fosse retirado dos créditos, se tornando o único caso de um diretor de segunda unidade a utilizar os créditos de Alan Smithee.
Bônus: Duna
Dune, 1984 // Toda a história da produção da primeira versão de Duna é um surto. Escrito e dirigido por David Lynch, baseado no livro de Frank Herbert, o filme conta com Kyle MacLachlan, que viria a trabalhar com o diretor em Twin Peaks; Virginia Madsen, que mais tarde viveria Helen em O Mistério de Candyman; Brad Dourif, nosso boneco assassino favorito na franquia Chucky; e Sting — sim, o músico.
Duna não é um filme de terror, a gente sabe. Mas aqui, nesta fazenda, adoramos o trabalho de David Lynch. O primeiro diretor que tentou adaptar Duna foi Alejandro Jodorowsky — com um elenco grandioso e esquisito que contava com Salvador Dalí, Orson Welles e Mick Jagger —, mas a produção não seguiu adiante. Dino de Laurentiis, o famoso produtor, acabou comprando os direitos de adaptação, e quando eles estavam quase próximos de serem extinguidos, ele chamou David Lynch para trabalhar na obra. Lynch realmente trabalhou na obra com afinco, e sua versão original ficou enorme. Para a televisão, houve um corte significativo, que Lynch desaprovou. Além de retirar seu nome dos créditos de direção e evocar Alan Smithee, Lynch ainda retirou seu crédito de roteirista, que ficou sob o nome de “Judas Booth” — uma mistura de Judas Iscariotes e John Wilkes Booth, o ator norte-americano que assassinou o presidente Lincoln.
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