Quando você se aventurar a conhecer algo saído da mente de Dennison Ramalho, provavelmente não estará preparado. Sim, falamos de sangue, violência, satanismo e outros componentes sui generis do bom e velho gore. Fã de grandes mestres do terror, Dennison também é história, afinal, não é todo cineasta que possuiu a honra e a competência de trabalhar com gênios do cacife de José Mojica Marins, nosso maldito número um, Zé do Caixão.
Com toda essa bagagem (acumulada desde a infância, mas compartilhada somente a partir de 1998), Dennison Ramalho é um dos cineastas mais brilhantes e macabros do mercado brasileiro, e é claro que nós faremos questão de apresentá-lo formalmente a vocês. Caso já o conheçam (o que é bem provável, principalmente pelo seu mais novo pesadelo, Morto Não Fala), separe um bom lugar no sofá e prepare-se para uma entrevista muito especial.
- Estamos de olhos bem abertos para o seu trabalho há algum tempo (embora ocasionalmente eles tendam a se desviar da tela por puro pânico). Falamos de Amor só de Mãe, Carcereiros, Encarnação do Demônio e, obviamente, Ninjas e Morto Não Fala. Como surgiu seu interesse pelo gênero horror? É o seu gênero preferido? Pode nos citar suas principais referências e como foram os primeiros passos no cinema?
Comecei a me amarrar nessas paradas mais dark quando meu pais me proibiram de vê-las! Virou uma curiosidade medonha. Crescendo nos anos 80, eu assistia escondido a um monte de filmes da Hammer na “Casa do Terror” (uma sessão semanal do gênero que rolava na Globo). A Hammer foi a minha Disney! Curtia muito também aquelas torrentes de gibis de Terror que chegavam às bancas na época, tipo Kripta, Spektro e Calafrio. Nos anos 90, meu interesse expandiu: comecei a ler revistas especializadas como Fangoria e Gorezone (sempre que conseguia botar as mãos em uma, o que não era fácil) e livros fundamentais sobre o gênero. Comecei também a conhecer o trabalho dos grandes autores mais de perto. Amava especialmente Romero, Friedkin, Tsukamoto, Larry Cohen e Carpenter.
- Suas produções são para os fortes e, com relação a Amor Só de Mãe e Ninjas, para os que possuem um esqueleto de titânio e cérebros já bastantes calejados pelo horror — ou simplesmente essas pobres almas não chegariam aos créditos finais com a sanidade preservada. Sim, nós adoramos, mas como foi a repercussão internacional dos curtas?
Foi incrível. Passamos em tantos (e prestigiados) festivais que hoje em dia já perdi a conta. Esse tipo de trajetória é uma glória para filmes curtos e, certamente, um grande orgulho pra mim. Por causa desses curtas (especialmente o Amor Só de Mãe) gente que sempre admirei, como Guillermo Del Toro e John Carpenter, começou a olhar pro meu trabalho e a curti-lo. Ganhamos também alguns prêmios. Mas os melhores foram os desmaios. Em três ocasiões fiz pessoas desmaiarem com o Amor Só de Mãe. Uma delas — fico com pena, mas agora já foi — foi uma criança que não deveria estar na sessão. Rolou num festival na França. Um idoso da cidade ficou tão pistola que escreveu uma carta pro evento protestando contra nossa seleção e dizendo que “se fosse o pai da criança, resolveria esse assunto nos tribunais”. O festival me deu a carta. Eu emoldurei e pendurei no meu escritório. Mó legal!
- O desempenho dos atores impressiona muito nos dois trabalhos (Ninjas e Amor Só de Mãe). Como foi a escalação e a preparação desses atores? Você possui alguns nomes que trabalha com mais frequência ou cada filme é uma realidade completamente nova?
Cada filme tem suas próprias demandas. Até agora repeti poucas colaborações. Mas tem algumas que adoraria repetir, como com a Débora Muniz e o Everaldo Pontes (de Amor Só de Mãe, o elenco inteiro de Morto Não Fala e o Flávio Bauraqui, que fez o Ninjas. Mas preciso ter ideias de projetos para eles.
- Como funciona a captação de recursos para a produção dos seus filmes? Pode nos contar um pouco sobre essa parte do processo e as principais dificuldades? Já é possível visualizar um futuro financeiramente promissor ou mesmo sustentável para as produções nacionais?
Só o meu primeiro curta (Nocturnu, de 1998) foi feito inteiramente com recursos próprios e colaborações da família e amigos. Todos meus outros trabalhos foram financiados com grana de editais de patrocínio públicos ou por aportes dos próprios produtores. Meu curta J is for Jesus, que integra o longa The ABC’s of Death 2 foi feito com cinco mil dólares dos produtores americanos. Já o Morto Não Fala, meu primeiro longa, foi um projeto encomendado e financiado pela Globo. Falar sobre o futuro das produções [de terror] nacionais é falar do futuro do cinema e do audiovisual brasileiro como um todo. O cenário, nesse governo do “comentarista de golden shower” aí, é desolador. O que me dá algum ânimo de driblar um total apagão cultural é a produção de séries de alto nível, que estão rolando e sendo bancadas pelos grandes players (Globo, Netflix, Amazon etc). A sobrevivência do audiovisual brasileiro passa pelas mãos deles…
- Sobre a parceria com Marco de Castro, como vocês se conheceram? Foi tranquilo trabalhar em parceria direta com o cérebro punk-rock-ensanguentado do autor?
O Marco é o autor de ficção de terror mais visceral, original e contemporâneo do Brasil. Colaborar com ele é sempre fodástico. A gente se conheceu… putz, será que eu lembro? Bom, acho que foi na falecida mailing list Canibal Holocausto (que reunia fãs de filmes de horror no fim dos anos 90 e início dos 2000). Se eu errei, me desculpa e me refresca a memória aí, Marcão! Eu fiquei sabendo, acho que por ele próprio, que ele tinha começado dois blogs: um de contos, chamado Casa do Terror e outro de jornalismo macabro, chamado Desgraceira. Eu adorava os dois. Lia tudo! Lá encontrei o conto Um Bom Policial, que adaptei pro meu curta Ninjas. Eu e o Marcão odiamos polícia e religião, então conectamos imediatamente. O resto é história e tá na tela, com muito orgulho!
- Agora que situamos nossos leitores, creio que eles estejam prontos para mais. Estamos ansiosos para assistir Morto Não Fala, o nome é bastante sugestivo, mas conte um pouco do que podemos esperar nessa nova incursão ao horror. Como está sendo a repercussão lá fora?
Morto Não Fala é meu primeiro longa. Foi uma encomenda da TV Globo para tentar a mão no gênero, testar o potencial técnico, a recepção de público e, possivelmente, alavancar uma série em cima do protagonista. Já foi escrita (por mim e pela minha parceira Cláudia Jouvin, que também assina o roteiro do longa), inclusive, uma primeira versão dessa série. A recepção do longa está sendo estrondosa. Tanto que já perdi a conta e o controle dos festivais onde estamos passando. Nós estamos sendo representados por uma agência de vendas internacionais topzêra (a Stray Dogs, da França) e vendemos o filme para a plataforma de streaming de terror Shudder. Com esses dois negócios, o filme bombou! Juro, já são pra lá de 20 festivais e 5 prêmios (no Brasil e no exterior). Fico sabendo que estamos na programação de alguns festivais por avisos de amigos: “Ei, comprei ingresso pra ver teu filme no Festival de Edinburgo! Você tá vindo?”. Está nesse nível… Sei que já vendemos para todos os territórios de língua inglesa, para Taiwan, China e Japão, e que vamos estrear em sala na Rússia.
- Em seus trabalhos, nota-se com alguma frequência uma espécie de azedume social, um ranço sobre algumas instituições (militares, sociais, religiosas). Essa relação entre o horror e as críticas sociais é uma preocupação na seleção de ideias ou é algo espontâneo, que aparece ao longo da produção dos roteiros?
É total uma preocupação! Se o terror não elucida temas dos seus tempos, ele fica vazio, fabular, ou simplesmente torna-se um veículo de choque babaca. Eu curto o terror que mexe com tabus, que transgride, que mete dedo sujo em ferida aberta. Gosto de terror que provoca, blasfema, que mostra o que não devia mostrar. Tenho especial tesão em expor autoridades, polícia e religiosos filhos-da-puta.
- Grande Dennison, aproveitamos para parabenizá-lo por revitalizar um subgênero incrível e muitas vezes subestimado como o gore. É um deleite ver nossos piores pesadelos traduzidos em tela com a maestria que você proporciona. Agora, para finalizarmos, o que vem por aí? Podemos esperar mais pesadelos em breve?
Tô, a duras penas, tentando (junto com a Casa de Cinema de Porto Alegre) levantar recursos pro meu próximo longa. O título, por enquanto, é Cruz das Almas. É uma história carnal, casca grossa pra caralho, de magia negra e maldição familiar. Tô também no time de roteiristas de uma série da Globo chamada Antártida. Quem tá capitaneando a criação é a Claudia Jouvin (super-parceira de longa data, que co-roteirizou o Morto Não Fala comigo).