Gabriela Amaral: “O cinema brasileiro de terror trabalha em um terreno muito fresco”

Roteirista e diretora de O Animal Cordial e A Sombra do Pai fala com a Macabra sobre as marcas do horror, a ampliação do gênero e suas influências

Quando O Animal Cordial estreou nos cinemas, muita gente ficou sem palavras para descrever a experiência insana de assistir o desenvolvimento de uma história que apontava várias pistas, mas seguiu um caminho inesperado. O cuidado com as cores, os ângulos que contam histórias, a crescente da tensão até o desfecho simbólico e poderoso, obra de uma artista que sabe conduzir sua equipe para atingir o resultado que espera.

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Gabriela Amaral Almeida, uma das mais importantes diretoras e roteiristas brasileiras, vem construindo sua carreira com talento, maestria e qualidade. Com O Animal Cordial ganhou o o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), e em 2019 apresentou A Sombra do Pai.

Esta diretora macabra tem o coração no Horror e topou conversar conosco sobre suas inspirações, paixões e projetos especiais.

Animal Cordial, filme de Gabriela Amaral
Cena de O Animal Cordial (filme de Gabriela Amaral)

ENTREVISTA COM GABRIELA AMARAL

  • Queria começar pelo começo da formação da Gabriela cinéfila, falando da sua paixão por horror e sua relação com o cinema de gênero. Quando e como surgiu, e como você sentiu que era para ser o tema da sua dissertação de mestrado?

Minha relação com o horror, minha relação com o cinema de gênero, surge muito cedo. Sem que eu soubesse que isso era uma paixão, necessariamente. Já disse em algumas entrevistas que eu nasci nos anos 80, em 1980, e durante a década de 80 e 90, muitos filmes de terror, de horror, de suspense, norte-americanos eram veiculados na TV aberta, a gente não tinha uma produção própria de ficção, de produtos audiovisuais de ficção, então muitos desses filmes preenchiam a grade, e eu assistia a muitos deles. E também a chegada das videolocadoras no país, nessa mesma época, onde o maior acervo das locadoras de bairro era de filmes norte-americanos de gênero — acho que minha sensibilidade, desde muito cedo, foi afeita a esse tipo de narrativa, e alimentada por esse tipo de narrativa também.

E aí, quando eu senti que era tema pro meu mestrado, foi que a paixão por esse tipo de narrativa me levou primeiro a fazer comunicação. Eu entrei em Comunicação na Federal da Bahia, querendo estudar o Hitchcock, que era um cineasta que eu também descobri na adolescência e que eu acho que foi o primeiro que me chamou a atenção pelo fazer cinematográfico. Foi definitivamente o Alfred Hitchcock. E eu soube que na Federal da Bahia havia um núcleo de estudo de cinema e eu queria estudar o Hitchcock até eu entrar e descobrir que o Hitchcock era o cineasta mais estudado do mundo (risos). Então eu levei a pesquisa a um segundo objeto de amor, que foi o Stephen King, cujos livros e filmes eu tinha consumido a minha vida inteira, então eu acho que foi desde sempre que eu soube que eu queria me aprofundar nesse universo.

  • Vendo sua formação, percebemos sua inclinação pro roteiro, mas como foi esse processo de se tornar diretora? Foi algo que você sempre quis ou algo que nasceu com alguma oportunidade? Particularmente, fico feliz demais por ver mais um nome feminino em grandes cargos do cinema de horror no Brasil.

A escrita foi uma coisa natural pra mim porque eu venho de uma família de classe média de trabalhadores. Meu pai foi um engenheiro da rede ferroviária, a minha mãe é professora de escola pública, professora primária, até hoje, e eu não tenho na minha família nenhum artista. São todos trabalhadores ou profissionais liberais. A escrita era algo mais imediato à mim, cresci lendo muito, meus pais incentivavam muito a leitura de ficção na minha casa. E ser diretora era uma coisa muito “assim”, eu nem cogitava a possibilidade disso acontecer. Não estava no meu horizonte de expectativa, então foi muito natural enveredar pelo caminho da escrita como canal de comunicação.

Mas, conforme eu entrei na universidade e estudei, fiz parte de um grupo de pesquisa de análise fílmica onde meu orientador, que é o Wilson Gomes, me incentivava a estudar o terror e o horror, ele próprio tem uma pesquisa sobre a criação do monstro nesses filmes, então ele se interessava muito por quem manifestasse interesse em estudar isso também. E eram poucas as pessoas na época, muito poucas. A partir do momento que eu entrei na universidade e esse campo de percepção do que era o cinema se abriu pra mim, foi surgindo a vontade — que foi uma vontade quase inconsciente — de dirigir filmes, mesmo que eu nunca tivesse posto a mão numa câmera.

Logo depois que eu defendi minha tese em Stephen King, eu prestei a prova da escola de Cuba pra roteiro, porque, novamente, era uma ambição que era mais palpável pra mim, mas na escola de Cuba tive acesso ao fazer cinematográfico em diversas áreas, e aí eu entendi o que era dirigir, o que era dirigir narrativamente, ou seja, o que era transformar a câmera no narrador. Isso pra mim intuitivamente já era muito forte, então foi uma questão de quebrar os paradigmas do campo mesmo, do exercício da direção, que é sempre reservada a homens, que no nossos país que é um país em desenvolvimento é uma arte reservada às elites, então tem uma série de paradigmas do fazer cinematográfico que não têm nada a ver com a capacidade de um autor ou autora de dirigir, e eu tive que enfrentar. Eu sempre falo pra diretoras jovens que têm esse medo da câmera, das lentes, da técnica (que isso é um medo que eu acredito ser muito incutido no feminino, o medo da técnica, o medo do científico, do matemático, de qualquer coisa que envolva atributos culturalmente atribuídos ao masculino): não tenham medo. Se você é um contador de histórias você pode contá-las em qualquer meio, e foi isso que que eu descobri ao ingressar na escola de cinema de Cuba.

Tem uma série de códigos e ressignificações que estão acontecendo dentro do gênero, com nossas histórias, e isso leva tempo.

Animal Cordial, filme de Gabriela Amaral
Cena de O Animal Cordial (filme de Gabriela Amaral)
  • O Animal Cordial e A Sombra do Pai são filmes com grandes cargas de horror. Parte do público brasileiro, acostumado com as produções mais sangrentas de Hollywood, nem sempre reconhece estes elementos nos filmes. Mas é preciso conhecer muito bem o gênero para poder dobrá-lo e transformá-lo da forma como você faz (e, por isso e tantas outras coisas, somos grandes fãs). Como tem sido a recepção dos brasileiros com suas duas obras mais recentes?

É uma pergunta difícil de responder, e eu te digo porquê: porque a distribuição desses dois filmes foi muito pequena, porque eles são ainda considerados filmes de risco pra que haja um investimento de fato e uma distribuição massiva, mais extensa. Nessa distribuição pequena que eles tiveram, que é focada num público específico, segmentado, a resposta foi muito positiva. Eu acredito que as pessoas que busquem esses filmes, os filmes de terror nacionais contemporâneos, sejam pessoas que estão ligadas à esse movimento, de alguma forma, de ressignificação do gênero que vem acontecendo, então é muito comum que o público que tenha chegado a esses dois filmes já sejam o público de alguma forma iniciado, digamos assim, que já experimentou esse gênero, não só no formato do cinema de gênero comercial norte-americano, porque tem isso [pra se levar em conta] também.

Tem muitos filmes de gênero não comerciais norte-americanos que nem chegam aqui, que seriam mais consonantes com a produção também não comercial de terror brasileira. Muitos não chegam, então é loucura achar que a gente pode comparar um A Sombra do Pai com um Annabelle. Não estou falando de qualidade ou falta de qualidade em nenhum dos dois filmes, mas são filmes cujas estratégias de narração são diferentes de acordo com a quantidade de público que eles têm como alvo. Annabelle faz parte de uma franquia, é um spin off de Invocação do Mal, que foi um filme que fez muito sucesso nos Estados Unidos e no mundo, então ele já tem todo um lastro de construção de universo. As pessoas já vão seguras sabendo o que elas vão encontrar e [o que deve] ser decodificado.

O cinema brasileiro de terror trabalha em um terreno muito fresco, muito novo, no sentido de que ele está buscando, nas histórias e no nosso imaginário, essas marcas que vão constituir o que será definido como o terror brasileiro. Quais são as marcas de produção de medo, quais são as marcas de produção de ansiedade, nesses filmes. Como é tudo muito novo é muito difícil lidar com essa expectativa cultural do espectador do filme de terror norte-americano e do filme de terror norte-americano mais comercial, mais amplo, com uma gramática já mais decodificada, mais facilmente reconhecível, é difícil de responder isso. Eu não sei como o brasileiro está reagindo aos filmes porque o brasileiro que assiste aos meus filmes, eu acredito que ele venha de um nicho. Agora, A Sombra do Pai acaba de integrar um projeto da Pandora, que eu acho fantástico, que é justamente levar esses filmes à multiplexes. Ele está ainda nesse processo de exibição, nessas redes de cinema que têm em shopping, de fácil acesso, e aí eu vou saber da reação, ou seja, tanto da frequência quanto da reação das pessoas, com mais tempo.

  • E como você vê a relação do brasileiro com o cinema de horror? O que é preciso para quebrar de vez a síndrome do vira-lata a qual tantos se apegam, e ajudar a solidificar a produção nacional, tornando-a atraente ao espectador daqui?

Tem uma série de códigos e ressignificações que estão acontecendo dentro do gênero, com nossas histórias, e isso leva tempo. É preciso também que uma política de incentivo à difusão e a compreensão do audiovisual brasileiro. O cinema hoje se tornou uma atividade elitista, o consumo do cinema é elitista, é muito caro ir ao cinema — isso está desde um trabalho de distribuição honesto, de criação de novas salas, pra chamar esse público pra participar dessa troca de imaginários através do audiovisual. Todo gênero se consolida com o tempo. O gênero nada mais é do que a reincidência de marcas num texto, num determinado tipo de texto, que faça com que você, como espectador, reconheça essas marcas, e contribua, enquanto o filme está sendo projetado. Você está ali contribuindo porque você reconhece uma marca, você tenta se adiantar à história.

Esse jogo de espectador e texto e obra, é um jogo onde o gênero narrativo é motor, ele é muito importante. É uma pergunta que tem muito mais a ver com como a gente encara a cultura feita aqui do que somente a ver com o cinema de gênero. É uma coisa mais ampla. A gente tem um país enorme, um país que ainda lida com questões básicas como alfabetização, formação primária, então a apreciação do cinematográfico tem muito a ver, também, com educação. É uma mudança que é necessária em todos os níveis.

A Sombra do Pai, filme de Gabriela Amaral
Cena de A Sombra do Pai (filme de Gabriela Amaral)
  • Seu último filme lançado seria seu primeiro filme, e levou uma boa quantidade de tempo para que fosse escrito. Como é seu processo de criação? Você costuma se isolar e trabalhar isso, ou deixa descansando na gaveta e retoma seus projetos aos poucos?

Cada filme, cada coisa, que você escreve pede um tempo. Por exemplo, O Animal Cordial eu escrevi o argumento do filme — a história do filme, o que que é o filme, do começo, meio e fim — com a Luana Demange, que é uma amiga e colaboradora artística, e foi diretora de arte de meus curtas. A gente estava num restaurante que havia sido assaltado umas semanas antes, e começamos, em uma conversa criativa, a falar através da dramaturgia, de uma história possível e acho que em uma semana eu tinha esse argumento levantado. E daí a ter o roteiro para filmagem foram três meses, quatro meses, não me lembro. A sensação interna que eu tenho de processo desse filme é de mais tempo, mas o fato de eu ter mergulhado no tema de uma forma muito profunda me dá a sensação de que ele levou mais tempo pra ser escrito. A questão do tempo de escrita é muito relativa.

A Sombra do Pai seria meu primeiro filme. Todo mundo que sai da escola de cinema ou que começa a carreira dirigindo curtas tem este roteiro que almeja dirigir como primeiro longa. Ele entra nessa categoria, mas enquanto eu o escrevia, eu fiz dezenas de curtas, escrevi uma peça de teatro, escrevi pra muitos diretores aqui no Brasil, acho que escrevi mais de dez roteiros junto com A Sombra do Pai, então não é que eu tenha passado oito anos escrevendo ele. A Sombra do Pai entra nessa categoria de filme que quero fazer, que você precisa começar de algum lugar, e eu estava sempre retornando a ele, à medida que eu avançava na experimentação dos outros trabalhos.

A vontade de escrever não é sobre um tema nem sobre uma imagem, é a história. Ela vem: “nossa, quero contar uma história onde tenha esses personagens e aconteça isso, isso e isso”, e aí se você se coloca à mesa pra escrita essa concatenação pode sair de uma forma relativamente fluida e rápida. Tem outras coisas que não, que são uma imagem, uma sensação, e você demora a decifrar essas coisas.

Nesse exato momento eu estou escrevendo um filme de exorcismo, digamos assim, que tem me lançado muitos enigmas existenciais, e que requerem que eu me afaste do texto por um tempo e volte a ele com um olhar menos cúmplice, mais analítico, pra ver onde estão as armadilhas que o próprio texto está me fazendo enfrentar. Depende muito do que você vai escrever. Não tem uma regra, não tem uma régua, de tempo pra escrita.

O tempo mínimo que eu já escrevi um roteiro pronto pra filmagem foram quatro meses, mas eu acredito muito se tiver um artista que fale: “ó, escrevi um roteiro em três semanas”, porque depende de como essa escrita está dentro de você, como essa história surge. Se ela surge por uma imagem, se ela surge por um enigma, se ela surge por uma questão, se ela surge por um personagem, por um tema, ou se ela vem como um presente, ela vem com forma já de história.

A Sombra do Pai, filme de Gabriela Amaral
Cena de A Sombra do Pai (filme de Gabriela Amaral)

O gênero nada mais é do que a reincidência de marcas num texto, num determinado tipo de texto, que faça com que você, como espectador, reconheça essas marcas, e contribua, enquanto o filme está sendo projetado. Você está ali contribuindo porque você reconhece uma marca, você tenta se adiantar à história.

  • Você extrai o que deseja do horror para contar sua história. Mais do que referenciar um filme de terror ou deixar pistas, você faz com que o espectador vivencie, de fato, aquela situação. E a direção de arte também contribui muito para isso. Como você construiu essa visão?

Pra mim, a chave de tudo são os personagens e as relações que esses personagens têm. Elas nascem em mim, não vinculadas ao desejo de fazer um filme de terror, isso é muito importante de dizer. Elas nascem em mim porque elas são questões que me interessam. Essas questões que me interessam, não raro, desaguam no gênero. E aí no momento de burilar essas relações em forma de narrativa, em forma de trama, o gênero já é uma coisa que faz tão parte da minha apreciação do que é narrativo, como eu respondi no começo da entrevista pra você, que as estratégias dele vêm naturalmente, nesse forjar narrativo.

Direção de arte, junto com fotografia, se a gente equiparar a literatura, é a descrição, é o papel da descrição dentro de um texto narrativo, ou seja, é extremamente importante. A construção de mundo passa muito pelo que os personagens sentem, então os espaços são um desdobramento do que os personagens vão enfrentar sempre. Isso livra você de ter apenas um espaço, mas ter o que a gente chama de locus dramático, que é o local dramático. Se uma história acontece dentro de um quarto, algo que tenha a ver com limitação de espaço interno do personagem, com medo do lado de fora, com confinamento, algo que tenha a ver com o que o personagem vai enfrentar, tem que contaminar esse espaço, porque é o que você vê. Você, como espectador no cinema, está vendo esses espaços e esses objetos organizados de modo que eles provoquem algum tipo de sensação, algum tipo de efeito. Se tem uma coisa que eu acho fundamental é sempre tratar tudo que é visual, espaço, fotografia, os figurinos e a maquiagem dos filmes. Eles ajudam, eles são a matéria própria de que é feita a construção de um personagem no que é a dramaturgia do audiovisual. Eles são extremamente importantes e eu gosto muito de trabalhar nessa chave com os meus colaboradores.

Pra falar do último filme, com o Valdy Lopes, o meu diretor de arte, o figurinista (Diogo Costa), o maquiador (André Anastácio) e a fotógrafa (Barbara Alves), cada um deles arranca uma dramaturgia da fotografia, uma dramaturgia da direção de arte, uma dramaturgia do figurino e uma dramaturgia da maquiagem — o que consiste, basicamente, em ler o roteiro nos termos da área de cada um desses colaboradores. E isso vai constituir o filme, porque sem isso você tem uma gratuidade plástica, você tem uma gratuidade na imagem que não me interessa. O cinema é pra você estar ali assistindo, ouvindo aqueles personagens, caso eles falem, e vendo esses personagens o tempo inteiro. Você está numa sala escura, idealmente, claro, e vendo aqueles personagens dentro de um contexto, que é feito para que você sinta coisas.

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Assista ao trailer de O Animal Cordial

Assista ao trailer de A Sombra do Pai

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Desbravo terras e guio cabras pelo Vale das Sombras. Nas noites de quarta-feira reúno a família na fazenda para deliberar sobre filmes e livros de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.