Os tentáculos do horror cósmico em À Beira da Loucura

Completando 30 anos em 2024, À Beira da Loucura é uma ode às insanidades criadas por H.P. Lovecraft e um dos melhores filmes baseados em sua obra.

À Beira da Loucura, um dos melhores filmes baseados na obra de H.P. Lovecraft, não é uma adaptação direta de seus contos ou livros. A história de John Trent, que viaja até Hobb’s End para encontrar o escritor desaparecido Sutter Cane, não saiu de nenhum escrito do mestre do horror de Providence. Na verdade, foi através da mente de Michael De Luca e das mãos de John Carpenter que esse pesadelo cósmico criou vida.

Ainda que não seja um dos filmes mais conhecidos de Carpenter — em comparação a Eles Vivem, Halloween – A Noite do Terror e Enigma de Outro Mundo —, À Beira da Loucura é uma daquelas obras para ficar na memória dos fãs de horror.

A Macabra relembra curiosidades e detalhes de À Beira da Loucura em seu aniversário de trinta anos.

“Você já leu Sutter Cane?”

Pelos corredores brancos e antissépticos de um hospital psiquiátrico, um homem é carregado por dois enfermeiros. Este homem é John Trent, e logo descobrimos como ele foi parar ali. Em meio a alucinações e a certeza de que talvez seja melhor permanecer ali, Trent faz uma retrospectiva de seu pior trabalho. 

John Trent (Sam Neill) era um agente de seguros freelancer muito bom no que fazia. Certo dia, enquanto almoçava com o dono de uma seguradora, o homem lhe pediu para assumir o caso da editora Arcane, que publica os livros do grande escritor de terror Sutter Cane (Jürgen Prochnow). Cane desapareceu com a data bastante próxima de um de seus maiores lançamentos, e seus fãs estão indo à loucura nas livrarias da cidade de Nova York, causando caos e violência.

Trent, então, acaba vendo um pouco dessa violência em primeira mão. Enquanto conversam sobre Cane, um desses fãs ataca Trent com um machado. Quando aceita o caso, tendo certeza que tudo não passa de uma jogada de marketing, Trent parte com Linda Styles (Julie Carmen), editora de Cane na Arcane, para encontrá-lo em Hobb’s End — uma cidade que deveria ser fictícia, saída da mente do escritor, mas que pode ter suas raízes na realidade.

Os horrores que Trent e Styles estão prestes a encarar são indizíveis e inimagináveis — exceto que, talvez, eles tenham sido ditos e imaginados por alguém. Os elementos principais de À Beira da Loucura são baseados em várias obras de Lovecraft: a loucura crescente, o sentimento de frustração diante dos horrores inexplicáveis a que são expostos, a decadência e o caos da mente que começa a ruir conforme se depara com esses horrores. 

“Pode esquecer Stephen King, Cane vende mais que todos eles”

Dadas as nuances e detalhes que compõem a narrativa de À Beira da Loucura, era de se esperar que o roteirista responsável por costurar a trama fosse alguém com vasta experiência no currículo. Mas, longe disso, Michael De Luca não tem tantos créditos assim. Seus principais trabalhos com a escrita de roteiros foram nas séries de TV de A Hora do Pesadelo: O Terror de Freddy Krueger e Justiça Final. De Luca também foi responsável pelo roteiro de A Hora do Pesadelo 6: Pesadelo Final, a Morte de Freddy e The Lawnmower Man, adaptação levemente baseada no conto de mesmo nome de Stephen King. 

Se, por um lado, Lovecraft é a maior base para a construção de À Beira da Loucura — temos até uma personagem chamada Pickman! —, não podemos deixar de citar ele, o homem, a máquina. Stephen King é citado algumas vezes ao longo do filme, principalmente em comparação a Sutter Cane. Em determinado ponto, a editora Linda Styles afirma: “Pode esquecer Stephen King, Cane vende mais que todos eles”. Mas King também está presente no filme de outra forma, com alguns elementos que são típicos de sua obra. Sendo King um escritor cujo trabalho foi em partes inspirado por Lovecraft, é normal que vejamos algumas semelhanças.

Mas há algo mais: as crianças, a igreja, a cidade enfurecida, a viagem de carro com o acidente no milharal… até mesmo o escritor assombrado, a metalinguagem tão característica das histórias que King costuma escrever. À Beira da Loucura, afinal, parece um amálgama que une esses dois autores em uma figura assustadora como Sutter Cane, que leva seus fãs à loucura e descreve situações perturbadoras.

“Este lugar faz minha cabeça doer”

Hobb’s End é um local de intensas atrocidades, e a mente de Trent acaba ficando cada vez mais aterrorizada conforme ele passa suas horas naquele local. Visões aterradoras tomam conta dele. 

Muitas dessas visões foram criadas em À Beira da Loucura pelo grupo KNB, especialistas em efeitos práticos. Formado por Robert Kurtzman, Greg Nicotero e Howard Berger, os três mestres dos efeitos já estiveram juntos em vários filmes de terror, como Uma Noite Alucinante 2 e Uma Noite Alucinante 3, Louca Obsessão, Pulp Fiction: Tempo de Violência, Um Drink no Inferno, entre tantos outros.

Para À Beira da Loucura, o KNB precisava dar vida a pesadelos semelhantes àqueles que Lovecraft já tinha escrito sobre. O desafio, claro, era que Lovecraft constantemente utilizava o recurso narrativo de que seus monstros tinham horrores indizíveis que não poderiam ser descritos e deveriam enlouquecer a mente humana.

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As criaturas criadas pelo KNB não têm muito tempo de tela, mas têm o tempo suficiente para mostrar que a equipe fez um bom trabalho. Carpenter já trabalhou anteriormente com esse tipo de horror corporal, como visto em O Enigma de Outro Mundo, mas aqui esses monstros dão um passo além. 

Ao final, conforme a revelação da verdade por trás de Sutter Cane se concretiza, Styles lê para Trent um trecho do livro. Aquelas páginas poderiam ser um manuscrito perdido de Lovecraft, sem dúvida. E os horrores indizíveis que levam as pessoas à loucura estão lá, além das páginas.

“Este é um jeito podre de terminar isso”

Dentro da mitologia cinematográfica de John Carpenter, À Beira da Loucura é o terceiro filme da chamada “Trilogia do Apocalipse”, seguindo os filmes O Enigma de Outro Mundo (1982) e O Príncipe das Sombras (1987).

Apesar de não ser uma trilogia oficial, e nem mesmo terem conexões que esperaríamos de uma “trilogia”, os três filmes tratam do fim do mundo de diferentes formas. Em O Enigma de Outro Mundo, uma estação de pesquisa no Ártico acaba encontrando um ser alienígena capaz de se reproduzir e encontrar hospedeiros, eliminando rapidamente os membros da equipe que estão alocados na estação. Com a fuga do corpo alienígena, é questão de tempo até que a humanidade esteja severamente ameaçada.

Explorando outra forma de fim do mundo, O Príncipe das Sombras se volta ao catolicismo e suas histórias. O fim do mundo, aqui, está armazenado em uma igreja decadente, onde um líquido pode ser a essência de Satanás. E, em À Beira da Loucura, acompanhamos o fim do mundo através da narrativa de um escritor de terror que conseguiu dobrar a própria realidade para se ajustar à sua mente insana.

“A realidade não é o que costumava ser”

Lovecraft, inegavelmente, foi um divisor de águas na história do terror ocidental. Suas histórias sobre cidades perdidas, criaturas abissais, horrores inigualáveis e livros malditos influenciou, e segue influenciando, grande parte dos autores que vieram após sua morte. 

Sua vida foi marcada por suas crenças e por suas idiossincrasias. Um homem das letras, não era o que se esperava de um “homem de letras” daquele período. Seus interesses se concentravam na astronomia e em histórias vindas do oriente, em mundos fantásticos e possibilidades que estavam além do alcance humano. Suas opiniões, também, eram polêmicas. Abertamente a favor da raça ariana, Lovecraft se casou com uma mulher judia em meados da década de 1920. 

O que saiu de seu trabalho ganhou forma por meio de músicas, filmes, outros livros e contos escritos por outros autores; deve-se a ele, também, parte da responsabilidade pela criação dos jogos de RPG. Criou mundos como ninguém, e os jogos de RPG beberam muito dessa fonte. 

Para desvendar essa figura tão cheia de excentricidades, o professor e especialista em terror W. Scott Poole se debruçou sobre as obras de Lovecraft e suas cartas pessoais, trazendo ao mundo o livro Necronomicon: Vida & Morte de H.P. Lovecraft, uma das maiores biografias do mestre do horror cósmico. Longe de pôr a vida de Howard Phillip sob panos quentes, o autor utiliza toda a vasta documentação disponível sobre a vida de seu objeto de estudo para dar ao leitor uma visão completa e realista dessa figura que inspirou tantos outros escritores, e que alterou para sempre a realidade do horror.

À Beira da Loucura, assim como a obra de Poole, são duas homenagens póstumas ao mestre de Providence. Uma ode às criaturas rastejantes e vindas de lugares longínquos que escorreram da mente às mãos de Howard Phillip Lovecraft.

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Necronomicon: Vida & Morte de H.P. Lovecraft, de W. Scott Poole, está disponível em pré-venda no site oficial da DarkSide Books. Qual sua leitura favorita de Lovecraft? 

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.