Perseguição, histeria e terror no País da Violência

País da Violência, de Sam Levinson, guarda mais semelhanças com os julgamentos de Salem do final do século XVII do que aparenta.

“Esta é a história de como minha cidade, Salem, perdeu a porra da cabeça.”

Há um prenúncio de tragédia logo na primeira frase de País da Violência. O nome da cidade, sendo Salem, já nos manda um aviso de alerta: aquela Salem? Qual a relação da situação dessa Salem com a Salem antiga, cidade que ficou marcada na história pelo episódio terrível de caça às bruxas, um delírio coletivo, do final do século XVII?

Dirigido e escrito por Sam Levinson, País da Violência conta a história de quatro amigas que vêem suas vidas virarem de cabeça para baixo, de um dia para o outro, quando os moradores da cidade resolvem iniciar uma perseguição digna de Salem. Lily (Odessa Young), Bex (Hari Nef), Sarah (Suki Waterhouse) e Em (Abra) são jovens que passam seu tempo entre a escola e o lazer fazendo coisas que jovens fazem: se divertem, saem, namoram, fofocam, vão na casa uma da outra. E, como é de se imaginar quando lidamos com adolescentes, às vezes são um pouco inconsequentes em alguns atos e, principalmente, em suas falas e opiniões. 

Em Salem, os segredos dos moradores começam a ser divulgados na internet. Históricos de pesquisa, fotos e mensagens trocadas, de repente, tudo se torna público. Começa com o prefeito da cidade, depois o diretor da escola, e em pouco tempo todos começam a ter sua privacidade exposta para o mundo. Ninguém sabe quem está hackeando os computadores pessoais, mas as desavenças começam a surgir: desejos secretos, imagens íntimas — o que leva também a uma série de mal-entendidos que começam a desestruturar a cidade.

Levinson inicia o filme deixando uma série de palavras em branco, vermelho e azul na tela, informando que são gatilhos para audiência. Bullying, abuso, masculinidade tóxica, racismo, nacionalismo, sexismo, homofobia, transfobia, tentativas de assassinato e estupro, violência e sangue são alguns dos gatilhos que o diretor aponta, em uma velocidade acelerada, com cenas do filme que ainda mal começou sendo passadas como acompanhamento. País da Violência é, afinal, um filme com a temática jovem, mas que apresenta um debate muito mais maduro: perda de privacidade e perseguição.

A escolha do nome da cidade foi deliberada, mas não da forma literal como parece. Em entrevista ao site Film School Rejects, Levinson afirma que gostaria de traçar esses paralelos com uma cidade que enlouqueceu e perseguiu pessoas inocentes, e em sua maioria mulheres. Mas que existem muitas Salems, e a internet é essa “nova terra”, onde precisamos aprender a conviver civilizadamente — e ainda falta muito.

Um conjunto de fatores foi determinante para o que aconteceu em Salem, em 1692, e claramente não ocorreu do dia para a noite. A dominação puritana e suas regras, que acreditavam que mulheres eram as pecadoras originais, sem qualquer mãozinha dos homens; a efervescência política da metade do século XVII também desempenhou seu papel para que tudo ficasse um pouco nublado nas colônias. Entre 1688 e 1689 ocorreu a Revolução Gloriosa na Inglaterra, depondo Jaime II e colocando Guilherme III em seu lugar como rei. Foi um período de mandes e desmandes tanto na Inglaterra quanto em sua colônia mais forte, os Estados Unidos.

Soma-se isso ao grande papel desempenhado por Cotton Mathers e seu livro lançado em 1689, Memorable Providences Relating to Witchcrafts and Possessions, podemos dizer que as coisas estavam alvoroçadas, para dizer o mínimo. Tudo isso aconteceu em um momento em que o boca a boca era a maior forma de informação, e o que os grandes líderes — principalmente os religiosos — afirmavam, era o que valia.

É perceptível como País da Violência surge em um contexto de certa forma semelhante. A política norte-americana sofreu abalos substanciais desde que o ex-presidente Donald Trump assumiu o maior cargo do país, em 2017. Direitos de grupos marginalizados foram revogados, aumento de violência e uma aceitação de determinados comportamentos, como preconceitos raciais e sexuais, que antes eram velados, passaram a ser apresentados em tom de piada e ironia — diversas vezes pelo próprio presidente, através de seu twitter. Se antes, no século XVII, a falta de informações era um problema, hoje informações demais são o novo dilema: em que acreditar, quando a mídia divulga notícias falsas e subestima a inteligência de seus cidadãos? 

Em um dos diálogos finais do filme, a personagem de Lily resolve fazer uma declaração sobre a situação. Como foi acusada de ser imoral e destruidora de lares. Mas há algo muito claro na fala de Lily que nos faz refletir: a condenação daqueles que tiveram suas vidas expostas surgiu pelas mãos de pessoas que, provavelmente, agiam da mesma forma em suas intimidades. Através de suas próprias leis e de seu próprio senso deturpado de justiça, diversas pessoas da cidade foram humilhadas e algumas foram quase mortas. 

“É o simples fato de não conseguirem seguir as regras que criaram, mesmo assim, fingem que seguem. Este é o mundo de vocês, vocês o criaram. Se é estrito demais, destruam-no completamente. Mas não olhem para mim. Não descarreguem seu ódio em mim, eu acabei de chegar.”

O que acontece em País da Violência é o que acontece em diversos microcosmos espalhados pelo mundo. É  a mesma histeria coletiva de Salem, em 1692. Uma histeria que acontece repetidamente na internet.

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A história da bruxaria é, acima de tudo, uma história feita de disputas de poder, de religião e de manutenção da ordem. Em seu livro Grimório das Bruxas, Ronald Hutton traça uma linha cronológica dos acontecimentos que levaram a bruxaria e a feitiçaria a interpretarem um papel protagonista diante das mudanças políticas, sociais e culturais. Através de uma pesquisa rigorosa, Hutton nos conduz da magia no Egito Antigo aos seus estudos e a importância que adquiriu no século XX, e todas as transformações que ela sofreu.

Grimório das Bruxas está em pré-venda na Loja Oficial da DarkSide Books nas versões Moon Edition e Witchcraft Edition.

País da Violência está disponível no catálogo da Netflix. Já conferiu o filme? Comente com a Macabra no Twitter e Instagram.

 

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.