Privação dos sentidos: o novo horror corporal

Separamos alguns dos filmes mais perturbadores e inquietantes da evolução do horror corporal — tente não desviar os olhos e aproveite o passeio, ok?

O horror corporal é considerado por muitos o pior pesadelo a se enfrentar em uma sessão de cinema. O termo foi criado na década de 1980, pelo pesquisador Phillip Brody, tentando agrupar filmes com uma temática bastante própria produzidos na mesma época. Diferente do horror externo, que se apoia em monstros, invasões extraterrestres ou catástrofes naturais ou induzidas, o terror corporal é bem mais intimista e perturbador.

O que ele nos mostra, afinal, são nossos pontos falhos, e como nosso organismo é facilmente subjugado quando somos privados de qualquer um dos cinco sentidos que nos mantem alertas. Seguindo nessa direção corpórea, tivemos a produção de clássicos como A Mosca, Um Lobisomem Americanos em Londres, A Bolha Assassina, Calafrios e Enraivecida na Fúria do Sexo  (ambos do mestre da temática, David Cronenberg), culminando com as criaturas humanoides horrendas e híbridas de O Enigma de Outro Mundo, de John “The Boss” Carpenter.

O que se desenvolveu a partir desses clássicos seminais foi um horror ainda mais calcado em nossos organismos, ou melhor dizendo: nas catástrofes resultantes de falhas ou privações voluntárias de quaisquer de nossos sentidos.

Para exemplificarmos essa rica vertente do horror, separamos alguns dos filmes mais perturbadores e inquietantes dessa evolução do horror corporal — tente não desviar os olhos e aproveite o passeio, ok?

A VISÃO

A capacidade visual é um dos nossos principais sentidos, e um dos mais difíceis de ser compensado por outros, quando perdido. Seja para obtenção de alimento ou para salvaguardar a nós mesmo e àqueles que nos são caros, nossos olhos são nossas principais ferramentas — e mecanismos biológicos fundamentais em um caso de fuga ou contra-ataque.

Ensaio Sobre a Cegueira

Blindness, 2008

Blindness, 2008 // Nesse drama de 2008 considerado por muitos (a começar por seu escritor original, o romancista José Saramago que proferiu: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo”) uma ficção terrivelmente plausível, somos lançados em uma cidade grande, quando o trânsito é subitamente transtornado por um motorista de origem japonesa que não consegue mais dirigir e alega ter ficado cego. Pouco tempo depois, todas as pessoas que tiveram contato com o motorista — sua esposa, um homem que o ajudou e roubou seu carro, o médico e os pacientes da sala de espera do consultório — também ficam cegas. O governo trata a doença como uma epidemia e imediatamente coloca de quarentena os doentes, em uma instalação vigiada o tempo todo por soldados armados. A mulher de um oftalmologista é a única que não é afetada, mas finge estar com a doença para acompanhar o marido em seu confinamento.

O que se desenrola a partir de então é o horror que somente a humanidade é capaz de realizar quando o caos a abraça repentinamente. Violência, negociações com o corpo, suborno e disputas territoriais. Ensaio sobre a cegueira pode não ser catalogado como um filme de horror, mas tenha certeza que ele o é.

Caixa de Pássaros

Bird Box, 2018

Bird Box, 2018 // A adaptação do romance de mesmo nome de Josh Malerman traz um mundo pós-apocalíptico que nos é apresentado pelos olhos de Malorie, personagem interpretado por Sandra Bullock. A adaptação do roteiro veio pelas mãos de Eric Heisserer, e a direção ficou com Susanne Bier.

Na trama, a deprimida Malorie e seus filhos precisam chegar a um refúgio para escapar do Problema — criaturas que ao serem vistas fazem as pessoas se tornarem extremamente violentas e procurarem pelo suicídio. De olhos vendados para não serem afetados, a família segue o curso de um rio para chegar à área segura.

A premissa não é nova, o final também não é notadamente surpreendente, mas o filme consegue nos prender e provocar reflexões dolorosas sobre quem nós realmente somos e como nos comportamos quando somos obrigados a confrontar os trechos mais sombrios de nosso passado. O principal ponto positivo talvez seja o elenco, que conta com atuações memoráveis de Sandra Bullock, Jacki Weaver, John Malkovich e Sarah Paulson.

AUDIÇÃO

Embora não seja considerada por muitos um sentido tão primordial para a sobrevivência, é através da audição em conjunto com a fala que a maioria de nós se comunica. Comunicação essa que pode significar cooperação, evolução, ou mesmo a salvação de uma vida que está sendo ameaçada por um criminoso ou predador assassino. É sobre essa parte que falaremos um pouco mais.

Um Lugar Silencioso

A Quiet Place, 2018

A Quiet Place, 2018 // Esse longa de 2018 brinca com a nossa audição de forma invejável. No enredo, a Terra é invadida por predadores monstruosos que localizam suas presas (humanas) pelo som, então o silêncio é a única proteção que uma família pode ter. Como se tudo isso já não fosse bastante complicado, a mãe, interpretada por Emily Blunt, fica grávida.

Nos adaptando às variações de volume da sonoplastia do filme, nós experimentamos a mesma emoção que a família sente na tentativa de manter um silêncio mortal e verdadeiramente ensurdecedor, exatamente como seria viver sem som algum, com medo de que algo pudesse te atacar caso você fizesse qualquer barulho. A tensão é imensa.

Logo nos primeiros minutos do filme o som em si se torna o maior inimigo, assim como quem o impõe. Então chega a ser inevitável ficarmos furiosos (exageradamente furiosos) quando uma criança faz algum tipo de ruído — e todos sabem que elas fazem barulho o tempo todo…

O Homem nas Trevas

Don’t Breathe, 2016

Don’t Breathe, 2016 // Quando filmes de suspense ou terror apresentam um personagem cego ou surdo, eles quase sempre são as vítimas. O Homem das Trevas vira esse modelo de cabeça para baixo, contando a história de um antagonista cego que atormenta um grupo de jovens criminosos que invadem sua casa.

Nesse filme que explora tanto a incapacidade visual quanto a especialização dos demais sentidos, Stephen Lang interpreta um veterano da Guerra do Golfo chamado Norman, que ficou sem sua visão após uma explosão de bomba. O longa enfoca como os sentidos aumentados que Norman desenvolveu devido a sua condição fazem dele uma força quase impossível de ser detida. Grande parte do horror experimentado por esses possíveis criminosos ocorre quando eles são forçados a experimentar o mundo da mesma maneira que seu atormentador cego. Se você gosta de um pouco de olho por olho e justiça com as próprias mãos, talvez devesse considerar esse filme.

Hush: A Morte Ouve

Hush, 2016

Hush, 2016 // Nessa produção dirigida por Mike Flanagan, a escritora Maddie Toung vive uma vida isolada desde que perdeu sua audição, ainda adolescente, se colocando em um mundo de total silêncio. Porém, quando um rosto mascarado de um assassino psicótico aparece em sua janela, Maddie precisa ir além dos seus limites físicos e mentais para conseguir sobreviver.

O filme se passa completamente dentro dos limites da casa de Maddie, e Flanagan faz um trabalho incrível construindo tensão e nos fazendo nos importar com essa mulher, que sequer sabe por que está sendo ameaçada. Flanagan usa muito bem as múltiplas janelas e entradas do lado de fora, fazendo com que o assassino lentamente espreite ao fundo em muitas cenas, sempre causando desconforto e medo nos espectadores (um recurso muito usado por Carpenter em seu lendário Halloween que foi copiado centenas de vezes). Considerando que Maddie é a personagem central e ocupa a tela sozinha durante a maior parte do filme, Kate Siegel fez um trabalho notável criando interessantes pontos de ação no desenvolvimento do roteiro. Hush é um ótimo exemplo de como aproveitar ao máximo um orçamento mínimo para obter a reação emocional correta do público.

PALADAR

Não espere terminar essa parte da matéria e fazer um lanchinho, isso é tudo o que podemos dizer. Mas se você se considera portador de um estômago resistente, então siga em frente e conheça alguns dos títulos mais indigestos e interessantes sobre esse tema.

Raw

Raw, 2016

Raw, 2016 // Se existe um filme de terror capaz de transformar o paladar em uma fonte de medo, esse é Raw. Contando a história da vegetariana de longa data e estudante de veterinária Justine, interpretada por Garance Marillier, e sua tentativa desesperada de se encaixar, observamos a garota saborear carne crua pela primeira vez junto a outros calouros. Como dizem, Justine provou do pecado e tomou gosto por ele, e não demora muito até que a carne humana seja inserida em sua dieta.

Raw é absurdamente visceral, valendo-se da velha escola do horror corporal combinado com uma corrente de humor que nasce da exploração desse tema em um ambiente estudantil. Como tudo começa com uma espécie de bullying, existe um certo conforto posterior, uma certa justificativa, mesmo nas atitudes mais grotescas da protagonista — não que isso vá deixar sua consciência tranquila ou te ajudar a pegar no sono.

Hannibal

Hannibal, 2001

Hannibal, 2001 // Quando a sequência de O Silêncio dos Inocentes chegou aos cinemas, sete anos haviam se se passado desde que Dr. Hannibal Lecter escapou da prisão. O brilhante e igualmente faminto psiquiatra agora está solto pela Europa. Mason Verger se lembra bem do seu contato com Dr. Lecter, pois foi sua sexta vítima. Embora horrivelmente desfigurado, ele sobreviveu, e agora busca vingança. Verger percebe que para encontrar Lecter precisa de uma boa uma isca: a agente do FBI Clarice Starling.

Com cenas de uma repugnância impar (a ponto de Jodie Foster declinar o papel como Clarice) Hannibal consegue ser muito mais desconfortante que o primeiro filme, entrando para o hall da fama dos filmes mais perturbadores inseridos nessa atualização do horror corporal.

OLFATO

Embora o olfato seja um fator importante no ambiente selvagem, no mundo humano e civilizado parece pouco provável que alguém coloque sua integridade física em risco pela incapacidade se sentir cheiros. Mas isso não impediu que o cinema cultivasse esse sentido em uma abordagem totalmente diferente.

Perfume: A História de um Assassino

Perfume, 2006

Perfume, 2006 // Perfume é um thriller baseado em um romance homônimo do alemão Patrick Suskind. A adaptação que chega bem perto do horror é ambientada na França do século XVIII. Conhecemos Jean-Baptiste Grenouille em seus flashbacks, um homem nascido em um mercado de peixes, abandonado pela mãe e dotado de um nariz hipersensível que gera uma obsessão por odores. Jean-Baptiste faz um aprendizado com um perfumista que o ensina o segredo dentro da coleta de 12 odores para criar um perfume, e sugere um misterioso 13º cheiro. Armado com esta informação, Grenouille recorre à sua maior obsessão e promove uma matança para recolher as essências de 13 mulheres.

Para tal façanha, Grenouille inicialmente utilizou um imenso decantador onde atirava os corpos das mulheres mortas no intuito de extrair suas essências. Como tal experiência resultava em fracasso, Grenouille se obrigou a outro método, ao perceber que o cheiro delas provinha da epiderme. Com a coleta do cheiro das mulheres ele percebe que quando o odor se espalha pelo ar as pessoas voltam a sua origem sentimental, pois a pele exala o amor universal e incondicional. Tal sentimento lhe causa dor por saber que ele nunca o experimentou verdadeiramente. O filme brinca com nossa empatia, e em determinados momentos, mesmo com os crimes de Jean-Baptiste, acabamos nos afeiçoando a ele.

TATO

A percepção do toque é provavelmente o sentido mais comum a todos os tipos de filmes de terror, afinal, a dor nasce do toque. Do horror corporal até os slashers e filmes de monstros, nosso próprio senso de toque é o que nos conecta ao terror que persegue os personagens. Quando vemos essas pessoas correndo e se escondendo de seus atacantes, essa poderosa conexão floresce, através de nosso próprio medo de sermos “tocados” pelo mesmo perseguidor. No entanto, alguns filmes vão além, e usam o toque como parte central de sua narrativa.

O Albergue

Hostel, 2005

Hostel, 2005 // A produção de 2005 de Eli Roth nos aproximou desse medo de sermos tocados, e o terror começa com o assassino simplesmente tocando a perna de uma de suas vítimas em um trem. As coisas pioram muito a partir daí.

Enquanto O Albergue pode ser categorizado como um slasher com alguma elegância, a intimidade das cenas de tortura realmente deixa o público à flor da pele. Possivelmente, O Albergue conseguiu sucesso onde muitos pais falharam miseravelmente desde então: manter seus filhos em casa.

Corrente do Mal

It Follows, 2014

It Follows, 2014 // O filme dirigido por David Robert Mitchell em 2014 também utiliza o sentido do toque, tornando-se uma parte essencial do enredo. Com uma estética que lembra muito os clássicos dos anos 1980, Corrente do Mal explora uma maldição que é passada de uma pessoa para outra através do sexo — inevitável não lembramos de Calafrios, de Cronenberg. Como todos nós podemos imaginar, o sexo provavelmente envolve “um pouco” de toque; Corrente do Mal capitaliza esse medo e nos leva a indesejáveis e traumáticas comparações com doenças sexualmente transmissíveis e potencialmente fatais.

EXTRA: PENSAMENTO

Apesar de não ser propriamente um sentido, é a mente quem controla (ou deveria controlar) todas as nossas sensações. Quando somos privados do controle dessas sensações e emoções, perdemos muito mais que um sentido.

O Babadook

The Babadook, 2014

The Babadook, 2014 // Essa coprodução australiana e canadense é uma grata surpresa cinematográfica no mundo do horror. Expondo a sobrecarga da maternidade e a tristeza que isso promove, o filme usa um monstro de contos de fadas em substituição a esse e outros dramas modernos, compondo uma alegoria perfeitamente estilizada e cuidadosamente elaborada para a sanidade mental. Brincando com nossa própria interpretação dos fatos, O Babadook nos direciona de um lado a outro, hora nos fazendo acreditar no sobrenatural, hora nos enlouquecendo e nos transtornando junto com a protagonista principal.

A Possessão de Deborah Logan

The Taking of Deborah Logan, 2014

The Taking of Deborah Logan, 2014 // O Mal de Alzheimer parece um assunto improvável para um filme de terror, mas é exatamente isso que acontece nesse thriller de cenas sobrenaturais. Deborah, interpretada por Jill Larson, tem exibido um comportamento estranho e agressivo com a chegada da velhice. Embora os médicos inicialmente atribuam isso ao Mal de Alzheimer, rapidamente fica claro que há algo mais nefasto e sobrenatural em jogo.

Enquanto sua família se esforça para lidar com a condição de Deborah, eles se veem emparedados em um mundo de ocultismo, canibalismo e possessões demoníacas. Não demora a ficar claro que a condição de Deborah é apenas uma fagulha do incêndio que a consome.

O Sexto Sentido

The Sixth Sense, 1999

The Sixth Sense, 1999 // Embora não se saiba ao certo como funciona (ou se de fato existe), todos temos algo que chamamos comumente de intuição, e que alguns categorizam como vidência ou mesmo mediunidade. Existem diversos filmes sobre essa temática, mas poucos se igualam em tensão, verossimilhança e surpresa quanto O Sexto Sentido de M. Night Shyamalan.

Se sustentando fortemente na premissa “Eu vejo pessoas mortas”, a trama de O Sexto Sentido começa com um menino que possui habilidade de ver e se comunicar com os mortos. Na companhia do psicólogo interpretado por Bruce Willis, os dois tentam entender esse estranho dom e colocá-lo em um bom uso — ajudando espíritos deixados para trás a aceitar a morte e completar qualquer negócio inacabado (embora no início, o terapeuta tenha extrema dificuldade em aceitar o que o menino diz). O filme foi um dos grandes momentos do cinema de 1990-2000, e é uma daquelas produções que você precisa assistir duas ou três vezes até se convencer que o trabalho da direção foi praticamente perfeito ao enganar todo mundo (isso se você não tiver um sexto sentido extremamente apurado, é claro).

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A beleza macabra do horror me conecta com o Outro Lado. Ofereço abrigo espiritual aos irmãos e irmãs da fazenda e acordo todos os dias às 3h da manhã. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.