O zoom profundo no Brasil e as possibilidades do gênero em Bacurau

O escritor Bruno Ribeiro fala sobre Bacurau e o ato político por trás de toda escolha artística no filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, e os detalhes que fizeram a obra alçar grandes voos no mundo.

* Por Bruno Ribeiro, autor de Febre de Enxofre, Arranhando Paredes e Porco de Raça.

O filme abre com um zoom do espaço sideral até o interior de Pernambuco, embalado pela voz de Gal Costa cantarolando sobre objetos não identificados. Essa aproximação vertiginosa entre o que está lá fora e o que está aqui dentro poderia resumir o tema de Bacurau, filme dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Há o outro e há nós. 

De que lado vamos ficar? 

O filme inicia com a personagem Tereza retornando a Bacurau, sua cidade natal, para o enterro da avó Carmelita. Neste momento, pensamos que Tereza será a protagonista, mas a obra logo nos diz que o protagonismo não estará nos personagens, estará na cidade e em sua população. O retrato dos moradores de Bacurau sempre é apresentado ao expectador através de planos onde há mais de uma pessoa inserida, não há individualização na estética nem na trama, o que acaba sendo um problema para conseguirmos nos aprofundar nos personagens. Porém, essa escolha diz muito do que o filme está propondo: a força do coletivo. Uma hora pensamos que o ex-guerrilheiro Pacote vai tomar o protagonismo, depois o cangaceiro não-binário Lunga, o professor Plínio ou a médica Domingas, chega-se a pensar até que iremos acompanhar mais os invasores americanos que desejam exterminar a cidade, mas não: Bacurau mostra que a força está em todos, não em um. Essa pluralidade se encontra também nas referências: uma lapada de cana nordestina com antropofagia, um labirinto infindável de possibilidades que vai de Glauber Rocha até John Carpenter, candomblé e LSD, faroeste com capoeira e vanguarda com cinema clássico. O longa flutua de um gênero a outro de forma hábil e, na maioria das vezes, imperceptível. 

Como citei Glauber Rocha, é importante ressaltar que o cinema brasileiro tem um histórico de bater de frente com os seus invasores, sejam eles na arte ou na política. Essa corrente, inclusive, vem antes do Cinema Novo. Bacurau, enquanto herdeiro desta peleja, não faz feio e consegue dialogar com o presente que vivemos, onde somos bombardeados diariamente por um governo que ama mais o que vem de fora e que podou consideravelmente os investimentos na cultura e na arte do país. 

A política para muitos deve ser distanciada da arte, mas não há como fazer esse corte. Toda escolha artística é um ato político, seja consciente ou inconsciente. É importante destacarmos isso, pois apesar dos traumas e porradas que o nosso cinema leva e levou durante a história, resistimos através da criação de filmes de qualidade, inventivos e que não tem medo de arriscar. Inclusive, essa questão é a que mais me atraiu em Bacurau: o risco. O filme não teme o público e nos desafia a cada fotograma, como uma boa obra de arte deve ser. 

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Como traduzir o gênero para o nosso país? Há um desprezo pelo terror ou o fantástico na nossa cultura. Isso é fato. Só ver que algumas pessoas que assistiram Bacurau me disseram que acharam “horrorosa” as aparições do disco voador. Na verdade, isso é o problema que temos enraizados com a possibilidade do fantástico no cinema nacional. Basta percebermos que até hoje se vira a cara para o Zé do Caixão. O que é um absurdo, já que ele foi um dos maiores cineastas do país, de longe. Conseguiu como ninguém sugar várias influências de fora do Brasil e de dentro, mexendo tudo em um caldeirão criativo, concebendo autenticidade com o pouco de verba que tinha a sua disposição.

Voltando ao gênero, é possível perceber que na visão anglo-saxã essa questão é lidada de forma madura. O próprio terror e as suas superstições para eles são levadas a sério. Aqui, levamos as superstições de fora a sério, não as nossas. O vampiro, mito do leste europeu, já teve inúmeras releituras no Brasil, mas muitas delas ainda são construídas em um estereotipo gringo. Não conseguimos fazer uma tradução deste mito para o nosso mundo. Nunca ninguém pensou em escrever um saci vampiro? Muitos podem ter rido disso e eis o problema: as nossas superstições sempre são chacota. “É um problema escrever sobre vampiros sob a ótica dos gringos?” Não, claro que não. Mas por que não traduzi-la para a nossa realidade ou para a sua realidade? Por que continuar produzindo uma arte que é mera tradução daquilo que já existe? Os próprios norte-americanos fazem isso: pegam o que é de fora e inserem na sua realidade. Eles valorizam o que é deles, por que não valorizamos o que é nosso? 

Quando ministro aulas de criação literária, percebo que muitos dos meus alunos que escrevem terror ou fantástico carregam consigo só referências de autores de fora e em sua grande maioria norte-americanos. Isso gera uma escrita genérica, uma reprodução banal do que já está lá. É preciso consumir as referências do que somos e nem digo só das brasileiras, mas da América Latina também. O que mais tem aqui é autor de gênero com qualidade, só buscar. Dito isso, fico feliz em ver obras audiovisuais como a recente série Cidade Invisível, que busca abraçar o que é nosso sem cair no habitual registro caricato. 

Outra coisa: o horror da América Latina é o real. Está no nosso dia a dia. Abram o jornal: a inspiração está ali. O terror é a ditadura que vivenciamos, são as dores e perdas das ruas, desigualdade, racismo, homofobia, a violência do dia a dia, é o medo em seu estado bruto. É dessa realidade em transe que Bacurau lida. 

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Neste contexto, um filme como Bacurau surge como corpo estranho, mas que se encaixa perfeitamente com o país. É o gênero como forma de relatar o que se passa conosco. E o melhor: ele suga as referências de fora sem se deixar contaminar por completo. Picasso já dizia: “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”. Bacurau faz isso. Rouba dos seus ídolos e cria um quebra-cabeça alucinado com este furto, gerando uma obra autêntica e brasileira dentro das suas possibilidades.

Outro ponto certeiro de Bacurau é o timing. Apesar dos diretores terem desenvolvido o roteiro anos antes da catástrofe política que vivemos, é interessante vermos que o filme foi lançado no momento em que a Ancine começou a ser atacada. A premiação que o filme recebeu em Cannes, neste sentido, teve um gosto duplamente especial: pela arte brasileira e para calar os autoritários que comandam o país e que odeiam a nossa arte. Sim, eles odeiam tudo que seja autenticamente brasileiro. Para esses que nos governam, o povo poderia tomar uma overdose de Brasol IV, o remédio fictício que a médica Domingas menciona no filme e que o estado distribui para a população. Este remédio atua como um anestésico, mas na verdade serve para mergulhar o povo numa postura de inércia. Assim como no filme, os donos do poder nos querem como zumbis. E não como os zumbis de George Romero, que mesmo lentos sabem morder e matar, mas como zumbis que nem sequer tem força para mover a mandíbula. Mortos duas vezes. 

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Bacurau termina com “Réquiem para Matraga“, de Geraldo Vandré. Um som que ecoa os faroestes mais distantes. “Se alguém tem que morrer que seja pra melhorar”, canta Vandré. É como Bretch dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. É preciso reagir aos ataques que o Brasil sofre e abraçar as nossas raízes. “Então, devemos evitar consumir arte estrangeira?” Claro que não! Bacurau é a prova viva de que é possível pegar o que está fora e transformar em nosso. Falando nisso, Bacurau poderá ser indicado ao Oscar de 2021. O filme já está elegível na premiação. A carreira da obra é rica no exterior e espero que essa caminhada cresça cada vez mais. Bacurau conquistou diversos prêmios importantes ao redor do mundo e entrou na lista de melhores filmes de 2020 do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama

Consuma o que vem de fora e exalte as vitórias de lá também, se empolgue quando um filme nosso ganhar um prêmio gringo ou se for elogiado por um americano ou europeu. Isso é bom. O que é ruim é se ajoelhar perante eles, perder a sua própria identidade e tornar-se uma mera reprodução genérica daquilo que não é nosso. Bacurau consegue abraçar o outro sem se ajoelhar, mantendo-se de pé. Sigamos o seu exemplo. 

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Escritor, tradutor e roteirista, Bruno Ribeiro já publicou em seus textos em jornais, blogs revistas e antologias. É autor dos livros Glitter, Febre de Enxofre, Bartolomeu, Zumbis, Como Usar um Pesadelo e e Arranhando Paredes. Foi vencedor do 1º Prêmio Machado DarkSide, realizado pela DarkSide Books, e terá seu livro, Porco de Raça, publicado em 2021.