Entrando no Castelo de Kafka

Imagens kafkianas são descritas de maneiras absurdas e semelhantes a vívidos pesadelos. Como acessar o castelo de um dos autores mais importantes da história?

Existem incontáveis formas de se ler Kafka, bem como surgem inumeráveis interpretações e análises filosóficas ou psicológicas sobre o que Kafka de fato queria dizer com seus manuscritos, diários, fragmentos etc. Os temas mais discutidos são a sua conturbada relação com o pai, seu comportamento em relação às mulheres, e o duelo entre a sua profissão e a vida de autor. São seus livros biografias? São seus diários realmente relatos íntimos? Onde estão as linhas que os dividem ou os unem?

Por se tratar de Kafka tudo é possível. Suas narrativas peculiares, fortes e inconfundíveis inclusive se tornaram adjetivo – Kafkaesk – (no original) ou kafkiano é a descrição de cenários absurdos ou semelhantes a vívidos pesadelos. O pensamento lógico perde totalmente o domínio e a racionalidade não é mais um artifício que auxilia os protagonistas a sair deste labirinto que é o mundo na visão de Kafka.

Steven Soderbergh ilustra com perfeição Kafka por completo. Em seu filme Kafka lançado em 1991/92, a vida e a obra se misturam em um thriller com toques de ficção científica, mistério, experimentos com humanos em um cenário expressionista envolto em pontos históricos de Praga. Vale ressaltar que Kafka no filme não é necessariamente Franz Kafka o autor. O personagem que apesar de levar o mesmo nome, seguir a mesma profissão e escrever compulsivamente em cada momento livre não é uma representação do autor. Seu primeiro nome não nos é revelado e algumas datas como, por exemplo, lançamentos de livros, não correspondem com a realidade. Porém, a releitura de Soderbergh tem a essência do autor e brinca com elementos contidos em seus diários publicados. As características que são descritas nos diários transparecem na atuação de Jeremy Irons que, extremamente magro, passivo, introspectivo segue sua rotina melancólico e frustrado por ter que trabalhar e perder tempo que poderia investir escrevendo. O filme todo é em preto e branco com exceção dos últimos 16 minutos. Estes são coloridos e é a partir deste momento que Kafka vive o que Kafka nunca teve a chance de viver ou escrever.

Kafka assim como K. o protagonista de O Castelo tenta alcançar o castelo. K. nunca conseguiu entrar, se perdendo em processos burocráticos que o levam a diferentes formas de frustração, desespero e finalmente esquizofrenia. Como leitores nunca saberemos o que de fato aconteceria com K. pois a obra foi publicada postumamente e incompleta. Especulativamente talvez nem Kafka tinha um final elaborado que destinaria K. para o sucesso ou a derrota. O que Soderbergh nos proporciona nos últimos minutos coloridos de seu filme é justamente um final plausível (e incrível).

Soderbergh ilustra e colore o que poderia ter acontecido se K. entrasse no castelo. O que K. e Kafka não conseguiram realizar, Kafka assume como missão após o desaparecimento de seu colega de trabalho e amigo Edward, que misteriosamente é encontrado morto e dado como suicida pela polícia. Kafka é basicamente sacudido para fora de sua zona de conforto e precisa vencer sua introspecção para finalmente entrar no castelo e descobrir o que acontece por lá. Inúmeras referências a todas as obras publicadas por Kafka entram num mesmo jogo, principalmente obras inacabadas como O Processo e O Desaparecido, onde todos os principais personagens se encontram e formam uma perfeita e harmoniosa convivência em uma melódica absurdez que todo pesadelo traz consigo. Para Kafka não há saída deste labirinto, porém o tempo está contra ele e pessoas que o ajudam começam igualmente a sumir. Kafka busca encontrar uma forma de entrar no castelo e recebe uma dica valiosa e metafórica de um conhecido artista/escultor e admirador de seus textos. Ele guia Kafka por uma entrada secreta que o leva por um caminho alternativo para o castelo. A cena cheia de simbolismo, se passa em uma noite fria e nebulosa no antigo cemitério de Praga. O artista guia Kafka por uma falsa tumba. A ironia sempre evidente nas entrelinhas dos textos de Kafka aqui se torna vibrante: todos os que pretendem entrar no castelo acabam no cemitério. Logo para Kafka o cemitério é a saída, mas também a única entrada.

Kafka nesta ocasião lembra o artista que, se ele não sair do castelo com vida, todos os seus manuscritos e diários devem ser queimados. E o artista pergunta: “Quem faria isso?” Kafka ecoa de dentro da tumba: “Um bom amigo o faria”. Exatamente o mesmo pedido Franz Kafka fez para seu amigo Max Brod em vida, que na verdade publicou tudo que encontrou postumamente não dando ouvidos ao último pedido do amigo.

Kafka segue então por um túnel que permite acesso ao castelo. Quando ele consegue acessá-lo, ele não passa por uma porta, mas sim por uma grande gaveta. Ele entra por uma tumba e sai por um arquivo, justamente onde toda burocracia “morre” provando o sentido do caminho inverso. Saindo desta gaveta tudo se torna colorido. Soderbergh usa propositalmente uma inversão de cores extremamente interessante. Usualmente, quando um filme representa sonhos ou devaneios imaginativos as imagens partem do colorido que representa a realidade, para um cenário preto e branco, meio esfumaçado. Porém neste filme em específico, o colorido dá um toque futurista à dura realidade expressionista da década de 20. Kafka em cores, entra novamente em um universo digno do adjetivo kafkiano.

Ele sai de uma gaveta de arquivos e chega em um labirinto formando um caleidoscópio de escadas. Outro toque interessante é que Kafka marca o caminho com tinta de caneta, para que ele consiga voltar. Como se o corretor de seguros quisesse lembrar o escritor de algo que aconteceu durante o dia para descrever mais tarde, um diálogo entre suas duas personalidades. Quando ele chega em um corredor ao som de um telefone ecoando interminavelmente, ele encontra inúmeras portas, mas não sabe qual abrir, ouve gritos de pessoas sendo torturadas, máquinas fazendo barulho e pessoas de jalecos brancos andando nos corredores com formulários em mãos. Começa aqui mais um desdobramento do pesadelo.

Kafka segue o caminho do corredor, simplesmente atordoado, assustado e anestesiado procurando por respostas para perguntas que ele não sabe formular. Ao entrar em uma sala, ele se depara com uma cena que mistura muitas referências que vão de Frankenstein a Nosferatu: um homem preso a um círculo de ferro como o Homem Vitruviano de Da Vinci tem seu cérebro operado. O cientista se chama Dr. Murnau e explica fascinado para Kafka como ele conseguirá dominar os pensamentos do indivíduo, e logo mais da massa isso “é a expressão do modernismo”. Quando Kafka o critica, o cientista contesta: “Você despreza o modernismo por já estar muito além”. Voltaremos para este diálogo em seguida.

Neste momento o autor e o personagem se homogeneízam em tempo e espaço ao mesmo instante que realidade e ficção buscam sua relevância. Realmente Kafka poderia representar muito mais e muito além do que escreveu em seus livros. Ele não “lutou contra” a incerteza da época pós-guerra, mas ele lutou com a depressão da certeza dos efeitos que se refletem contra as minorias. Kafka, sendo de uma família de judeus, estudou e escreveu em alemão, morando em Praga. Teve suas irmãs mortas em campos de concentração e conviveu com brutalidade física e psicológica da guerra. Mas seus livros não são relatos destes acontecimentos e sim da sua alienação. Kafka é um símbolo de minorias e de contradições, mas principalmente o que se pode ler e ver no filme de Soderbergh é que contra labirintos políticos e burocráticos não se consegue lutar. Os finais abertos nas últimas três obras podem representar um reflexo de falta de esperança. O incrível desse filme é que Soderbergh dá à sua maneira um final, em colorido, do que poderia ser e é um final que perfeitamente caberia nos livros pois captura e representa as narrativas de Kafka. É ver Kafka até o final ao invés de ler.

Auto reflexão e Intertextualidade em Kafka

Kafka em sua representação em preto e branco é um homem inerte, sem motivação e sem coragem. Entrando no castelo porém, ele imerge em uma atmosfera onde ele – no modernismo – recebe uma “licença para matar” e neste ritmo digno de James Bond o inerte homem se desenvolve em uma metamorfose completamente diferente.

Extrapolando o diálogo citado acima entre Kafka e Dr. Murnau: “Você despreza alguém como eu”, diz o cientista louco, “porque você despreza o moderno. Mas você está muito além do que é moderno. Você escreve sobre isso, documenta… Ao contrário de você, eu escolhi abraçá-lo”. O cientista atua como executor do lado sombrio do modernismo, usando tecnologia de ponta para fabricar um novo tipo de homem e apagar qualquer traço de individualidade.

Assim, o filme se refere não apenas ao trabalho de Kafka, mas também à sua interpretação como uma previsão do modernismo. Desta forma, a produção de Soderbergh deve ser considerada como uma leitura de leituras, um metatexto respirando transmedialidade. E justamente com esta característica, a leitura de Soderbergh tende a não afirmar que a obra de Kafka representa uma crítica incognoscível do modernismo. Mas muito mais uma suposição de que o desespero de seus escritos reflete ou refletiu no trabalho preliminar resultando na obra. Ou seja, que o que ele escreveu de alguma forma se tornou realidade, ele luta com a aceitação transcendental de um destino inevitável.

A renúncia de Kafka domina quando ao final do filme, após ter se tornado finalmente um protagonista herói, ele foge. Com esta fuga ele volta para o cemitério e morre à sua maneira, mas continua vivendo. Em preto e branco novamente, Kafka se mistura em meio à multidão e se adapta à sociedade moderna. Não há saída do labirinto, nem despertar do pesadelo. O certo fica incerto, o seguro se torna inseguro. É o que sentimos ao ler Kafka e essa essência captura também seus espectadores, ver nas cenas finais que ele está morrendo e que a última coisa que irá escrever é a carta para seu pai, é de fato cronologicamente incorreto se comparado à vida real do autor, mas reorganiza Kafka cinematograficamente como nenhum outro filme conseguiu. 

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Publicado por

Irmã Gerndt

Convicta de que em alguma vida passada quebrou muitos espelhos (só nesta encarnação foram 3), Rebecca P. Gerndt vive cada dia como se fosse uma sexta-feira 13. Já que nem tudo na vida deve ser pautado com egocentrismo e superstição, foca seus estudos em literatura e mídias onde analisa profissionalmente o azar dos outros, ficcional ou não. Atualmente segue otimista por ter encontrado o macabro apenas nos livros, séries e filmes (porões, ruínas, florestas, castelos abandonados ou manifestações paranormais que sempre iniciam às 03:15h) mas pode ser apenas coincidência.