Emily Bennett nasceu e cresceu em Charleston, Carolina do Sul, em uma casa bem cristã. Quando era criança, sempre se sentia atraída por coisas que pareciam proibidas – histórias assustadoras, crimes reais, histórias sobre o oculto etc. O Halloween, claro, era seu feriado favorito.
Ela leu Edgar Allan Poe quando tinha 8 anos, influência da avó, a única pessoa da família que a deixava alugar filmes de terror. Ela se sentava no chão, comendo pipoca e assistindo filmes assustadores com a avó atrás de si. Foi aí que o amor por filmes de terror começou: no conforto da toca da avó.
A cineasta dirigiu um curta de terror chamado LVRS, com duração de 11 minutos, que será exibido no Phenomena Festival no dia 10 de dezembro (às 18h na Matilha Cultural). Em parceria com o festival, conversamos com Emily Bennett para saber um pouco mais sobre as intenções e raízes de seu curta-metragem, bem como debater a responsabilidade dos artistas na criação de suas obras.
ENTREVISTA COM EMILY BENNETT
LVRS significa “amantes” sem as vogais e você disse em algum lugar que está escrito assim porque é um filme sobre abuso – “e em relacionamentos abusivos, um parceiro tende a tirar as coisas do outro”. Isso é muito poderoso. Você pode nos contar um pouco mais sobre as raízes desse curta-metragem?
LVRS nasceu de um relacionamento real que eu tive. Eu finalmente me separei desse indivíduo e, naquela noite, tive um pesadelo intenso sobre ele e a experiência de estar com ele. Esse pesadelo é, mais ou menos, o filme. LVRS é uma representação do meu subconsciente da minha mente tentando entender o abuso que eu passei.
Felizmente, nos últimos anos, o terror nos deu inúmeros filmes socialmente poderosos, abordando questões importantes como racismo, machismo, relacionamentos abusivos, maternidade, diferenças sociais e assim por diante. Qual é o papel desse gênero nesse sentido, na sua opinião? Como nós podemos criar debates em filmes dentro de um gênero que, para muitos, ainda é resumido erroneamente em sustos e surpresas?
Como cineasta, o gênero me dá uma grande liberdade criativa para tratar de assuntos psicológicos e sociais. Dentro do terror/horror psicológico, eu sou livre para usar imaginários mais marcantes e fantasiosos para passar o sentimento da história e dos personagens dela. Usando LVRS como exemplo: ao invés de mostrar um homem batendo na sua companheira de maneira realista, eu queria desequilibrar a audiência e sugar eles para o pesadelo que eles são livres para interpretar. Eu não queria simplesmente mostrar o abuso. Eu usei sons surreais e imaginário abstrato para mostrar para a audiência como o abuso parece ser. Esse método também deixa o curta aberto para interpretação, permitindo que cada pessoa chegue nas próprias conclusões. Eu acho que isso é mais atrativo do que uma narrativa dramática mais direta.
Podemos criar debates dentro do terror olhando para os grandes cineastas do gênero e nos perguntando por que eles são tão incríveis. Kubrick. Friedkin. E, mais recentemente, Lynne Ramsay e Ari Aster. Esses cineastas não nos mostram gore só pelo choque. Eles não contam apenas simples histórias de fantasmas. Eles nos mostram personagens complexos e relacionáveis que passam por horrores por causa de suas falhas profundas e seus erros. É muito fácil mostrar seios, sangue e sustos. Essas coisas não me dão pesadelos. O Iluminado me dá pesadelos porque faz eu me perguntar: “O que eu faria se meu pai quisesse me matar?”. Hereditário me assusta porque eu me pergunto: “E se eu matasse meu irmão por acidente e tivesse que enfrentar a ira e o desdém da minha mãe?”. Essas ideias mais profundas que me deixam acordada de noite. Elas me fazem confrontar os medos que tenho na minha vida. Terror é uma terapia para mim. Se eu consigo processar histórias que realmente me assustam, eu posso encarar os medos reais com mais convicção na minha própria vida.
Como o filme mostra um relacionamento violento, você estava preocupada sobre o quanto podia ser mostrado na tela e o quanto de violência tinha que ser implícita?
Eu queria controlar exatamente o quanto de violência a audiência veria em LVRS. Muita dessa violência é implícita ou aparece tão rápido na tela que você mal vê. É o que leva até o momento de violência que causa o efeito. É como o teatro grego antigo, onde as mortes aconteciam fora do palco, deixando a audiência imaginar as cenas mais assustadoras. Eu queria usar esse método em LVRS. O suspense e criar a tensão e ansiedade é muito mais importante do que o gore em si. Eu amo e respeito efeitos de gore bem feitos, e eu adoro usá-los. Mas sempre com um propósito emocional, que converse com a história e os personagens.
Há uma ótima cena no seu curta em que a mulher está olhando o parceiro e ela se encara no espelho, logo antes de vermos que os pés dela estão machucados. É um momento breve e perturbador. Você pode nos contar um pouco mais sobre os recursos que você usou para abordar o tema, como o próprio espelho?
O espelho foi inspirado pela pintura de Rene Magritte, O Filho do Homem. É o quadro do homem com um chapéu e uma maçã verde enorme na frente de seu rosto. Nós podemos imaginar como o homem é, mas não conseguimos vê-lo ou conhecê-lo. Eu queria mostrar o homem em LVRS desse jeito – escondido, misterioso e intocável. O espelho em si é uma mentira no filme. Ele nunca reflete a verdade até o final, quando o homem vai embora. Era o único efeito visual que eu sentia que podia passar a emoção complicada da relação entre os amantes. Alguns compararam LVRS com o curta da Maya Deren, Tramas do Entardecer. Por mais engraçado que pareça, eu nunca vi esse filme antes de terminar LVRS. Mas me sinto honrada em ser comparada com o trabalho incrível dela.
Depois de ter exibido o seu filme em festivais e mostras, você teve algum feedback marcante sobre LVRS e como as pessoas se relacionam com ele?
Muitas pessoas vieram até mim contando suas próprias histórias de abuso. Esse foi o meu maior presente – abrir o diálogo. Mostrar para a audiência um filme que os deixa confortável o suficiente para falar de suas próprias experiências.
O maior inimigo da mudança é o silêncio. Eu queria quebrar o silêncio sobre abuso. Eu sou muito grata pelas pessoas terem compartilhado suas histórias comigo. Quanto mais pudermos falar dessas experiências juntos, mais nós podemos empoderar outros, encontrar ajuda e a sair de uma situação de abuso.
O Mapa da Violência no Brasil mostra que o número de mulheres assassinadas aumentou no país – de 2003 até 2013, de 3.937 para 4.762 mortes. Em 2016, uma mulher era assassinada a cada duas horas no nosso país. Na maioria dos casos, é difícil para uma mulher ver o ciclo do abuso nas próprias relações, o que leva a muitos julgamentos e noções erradas de colegas e membros da família. Essa pergunta é relacionada à uma anterior, mas como você acha que a arte pode ajudar a discutir e elucidar esse tema para a audiência?
Essa pergunta me fez chorar. Esses números são horríveis e inaceitáveis. As histórias que nos vemos nos filmes mostram como nós vivemos as nossas vidas. Se cineastas continuam abraçando problemas como abuso, fica mais fácil conversar sobre esses assuntos. Cineastas têm uma grande responsabilidade nesse ponto. Um filme que normaliza abuso diz para a audiência: “Isso é ok, é aceitável”. Minha responsabilidade como cineasta não é só sobre engajar e entreter, mas sobre considerar honestamente como o meu filme vai afetar a audiência.
LVRS não diz apenas que “abuso é errado”. Ele mostra para a audiência como o abuso parece ser e por que é tão difícil falar sobre isso. Porque quando eu estava em um relacionamento abusivo, eu não conseguia ver isso. LVRS responde a pergunta: “Bem, por que ela simplesmente não foi embora?”. Ela não foi embora porque ela não via o que estava acontecendo até ser tarde demais. Isso empodera a audiência porque eles podem ver o que está acontecendo.
E, vendo isso acontecer com um estranho na tela, talvez façam eles reconhecerem isso quando acontecer com alguém que eles conhecem. Talvez aí eles consigam acabar com o ciclo de abuso. Arte não é feita para julgar. Arte é feita para iluminar, explorar e fazer perguntas. Arte deveria engajar os corações e as mentes da audiência. E, ao fazer isso, espera-se que isso traga mudanças.
As mulheres geralmente são retratadas como vítimas nos filmes de terror – coisas sobrenaturais, criaturas monstruosas, psicopatas. A relação com o filme sempre me parece diferente quando uma mulher está atrás das câmeras. Você se sente dessa forma quando você assiste outros filmes? Você tem alguma mulher diretora como referência?
Eu geralmente consigo dizer quando um filme é dirigido por uma mulher. Nem sempre, mas com frequência. Existe uma especificidade às vezes que aparece nos momentos mais silenciosos. Ou no jeito que a violência é mostrada. Mas cada mulher tem o seu próprio jeito de dirigir, assim como todo o homem tem um jeito diferente de dirigir. Eu espero pelo dia que o conceito de ser uma mulher diretora não seja uma novidade.
Diretoras que eu amo: Karyn Kuzama. Debra Granik. Reed Morano. E, minha favorita, Lynne Ramsay. Precisamos Falar Sobre Kevin é um dos filmes mais assustadores e mais bonitos já feitos que eu vi. E Você Nunca Esteve Realmente Aqui é um estudo intenso sobre restrição e tensão. É também um dos filmes mais violentos que eu já vi, mas ao mesmo tempo ele mal mostra a violência. Você só sente. Isso é um trabalho de mestre.
O Phenomena Festival se foca em criar oportunidades para assistir e curtir filmes de todos os cantos do mundo que flerta com o terror, o incomum e o bizarro, recompensando a sua qualidade, originalidade, promovendo e encorajando as produções de filme de ficção no Brasil. Quais são suas expectativas para o festival e como você entrou em contato com os organizadores?
Eu me sinto honrada por ser incluída na programação. Eu entrei no festival depois de entrar em contato com o organizador, Cauê, pelas redes sociais. Nós temos vários amigos em comum por causa de outros festivais e conversamos sobre LVRS. Ele então pediu para eu entrar. Eu não poderia estar mais empolgada em ser parte do festival. E eu estou incrivelmente lisonjeada e agradecida por esse convite.
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Esta entrevista foi produzida pela Macabra em parceria com o Phenomena Festival. O evento acontece nas cidades de São Paulo e Paraty, entre 28 de novembro e 13 de dezembro, com doze dias de exibições, painéis e workshops. Confira a programação completa aqui e acesse o site do festival para saber mais.