O vermelho das chamas ilumina a casa que não vê eletricidade há anos. Aperto os olhos para evitar a fumaça que invade as frestas das janelas, sobe preta por debaixo da porta, tingindo de cinza os panos de prato que algum dia tiveram cor, hoje já não me lembro quais. Observo seu rosto franzino, meu filho; mesmo no sono, sua face treme em esgares de medo e dor. Com dedos luminescentes, febris e manchados de fuligem, afago sua pele quente, seus cabelos molhados, sorvendo de teu suor com beijos secos provindos de lábios agrestes. Sobre o colchão sujo, você inunda os lençóis encardidos com poças de salmoura.
No começo de tudo, você tinha um ano de idade. Então, éramos papai, você e eu, entre quatro paredes, neste pequeno edifício de três andares. Fizemos um bolo, penduramos balões descombinados pela casa, decoramos a mesa com seus ursinhos de pelúcia, tiramos fotos do seu primeiro aniversário com celulares que, depois, descarregados por anos, ainda insistiríamos em carregar para todo o lado, com a esperança de, um dia, se acenderem com alguma mensagem ou ligação, mostrarem as fotos da minha barriga de grávida, dos seus primeiros meses, dos meus amigos mortos, dos funerais dos nossos familiares.
Víamos, da varanda do apartamento, os corpos espalhados pelas ruas, pelotas humanas arroxeadas pelas sarjetas, agrupadas como baratas, sufocadas e afogadas nos próprios fluidos, fleuma e sangue, suas manchas de decomposição fazendo desenhos bonitos de nuvens. Com a enxurrada das enchentes, nós três brincávamos de adivinhar os formatos, tatuagens fúnebres decalcadas no chão: “Olha, mamãe, não parece um cachorrinho?”.
Depois, quando foi a vez de papai e você viu a massa branca de larvas, mil grãos de arroz cobrindo o tapete que enrolava a carniça crescente que agora era a única coisa que restava do amor da minha vida, dando-lhe movimento, o estertor dos vermes, teve pesadelos em que parecia sufocar com o próprio vômito, gritando na madrugada sobre bichos que saíam dos seus olhos, das suas orelhas, subiam pela garganta ou pulavam do buraco do pipi. “Filhinho, não tenha medo. Elas são bebês, são bebezinhos das moscas, assim como você é o bebezinho da mamãe. Papai virou um berçário, meu amor. Olha só como isso é lindo.” Naquele dia você até conseguiu rir e achar graça nas imagens que projetei, e ainda disse, passado o tempo de infecção, comendo a carne crocante de sal, fétida e adocicada do seu pai, que assim faríamos com que ele morasse para sempre dentro de nós.
Papai nos serviu por um longo tempo, e foi como se a sua fala tivesse se tornado profecia — no seu rostinho de criança eu via a imagem viva dele. Bonito e inteligente, foi você quem teve a ideia de usarmos os ossos — limpos, brilhantes, depois de tantas sopas — para montar novos brinquedos, um quebra-cabeças humano. À luz das velas eu te explicava os nomes de cada um deles com a ajuda de uma velha enciclopédia científica, encontrada no apartamento vazio da vizinha. Sobre a mesa da cozinha, remontamos o corpo de papai e o deixamos ali, sorrindo, olhando para o ventilador quebrado do teto. Na cabeça colocamos um chapéu recortado que desenhamos por cima de mais de uma dezena de desenhos na nossa última folha sulfite.
Hoje, no seu aniversário de sete anos, bolas de fogo começaram a cair do céu. Corremos até a varanda e te mostrei, com a alegria dissimulada que os anos de isolamento me ensinaram, que as árvores estavam todas em chamas. Cantamos parabéns e fingimos assoprá-las, como se fossem as velas de um bolo triste e ressecado. “Olha só, filho, o mundo todo está comemorando o seu dia.” No meu colo, seus olhos inocentes brilhavam refletindo os incêndios como uma vez brilhavam vendo as luzes de Natal.
Dói respirar. Tusso coágulos de sangue, vendo a chuva que faz o mundo queimar. Há buracos no teto, pedras e pequenas chamas por todo lugar. Volto à cama, fagulhas furam o meu vestido e a minha pele, o piso de porcelanato queima as solas dos meus pés. Me faz pensar na areia quente da praia, nas ondas de um mar que você nunca conheceu porque o tempo findou para o planeta. Deitada ao seu lado, abraço seu corpo de pluma, de menino-anjo, sem peso, ossos de passarinho engaiolado, e ajeito o travesseiro sobre o seu rosto. Aperto. Feliz aniversário, meu amor.
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