A rês do Coronel

Em dia de primeira comunhão, a graça que se pede é como um presente de Deus. Confira o conto inédito de Márcio Benjamin para a Macabra.

Sentada como sendo assim uma boneca de louça, a menina aguentava com bravura os puxavantes no cabelo cacheado feito pelas mãos decididas da avó.

— Fique em pé, minha fia, deixe Vovó ver — falou a velha enquanto duelava com um cacho que teimava em não se dar por vencido.

Com cuidado, a menina se levantou, como se o vestido fosse feito de vidro. Mas não teve como não se encantar com a própria imagem no espelho.

— Deus me perdoe, Luzia, mas você tá merminha Nossa Senhora.

Orgulhosa, a menina sorriu enquanto a avó lhe baixava o pequeno véu branco e arrumava de novo o inexistente amarrotado na saia.

— Vá com Deus, minha filha.

Suando a vela que trazia nas mãos, seguia firme para a porta da casa humilde.

Lá fora, a carroça já lhe esperava apinhada de outros moradores, também em rumo pra cidade.

O estalo no lombo do cavalo foi suspendido quando a senhora surgiu gritando.

— Tome, menina avoada, o terço — disse, enquanto fechava o humilde rosário de contas nas mãos de Luzia. — E segure com força, com cuidado. Terço de primeira comunhão é bento. Deus o livre perder! E se esqueça não, quando tomar a hóstia, feche os olhos e peça uma graça.

A menina fez que sim com a cabeça enquanto via a senhora sumindo por dentro da poeira.

Foi bem umas duas léguas pra chegar na cidade. A igreja andava muito bem decorada e havia outras crianças à espera da comunhão em discreta algazarra, como um bando de pássaros brancos revoando no céu.

Já dentro da igreja, a meninada ainda ria e conversava entre si, cochichando sobre Luzia, e o seu vestido acanhado, os seus sapatos emprestados, de vários números maiores.

Constrangida, a menina encolheu os pés por baixo dos bancos, sentindo o jornal socado dentro dos calçados lhe cutucar os dedos.

Logo a fila se formou. Apenas Luzia vinha só, mas todo mundo sabia o porquê. Diziam que sua avó era metida com bruxaria, e numa grande balbúrdia por conta de um chá dado a uma mocinha buchuda, o Padre a expulsou da igreja pra nunca mais voltar.

A menina não sabia disso, nem achava que a avó andava pegada com coisa feia, sabia apenas que era uma mulher braba mas muito boa, que a pegou pra criar quando os pais morreram, e que entendia do mundo, de carinho a reza, de curar bicho a amansar tempestade com sal. E que vez por outra benzia o povo que chegava aperreado, lapeado de doença de corpo e de cabeça.

Essas sim assustavam Luzia, quando ela se escondia dentro do quarto, sob os gritos da avó, e brechava por entre as frestas da porta as pessoas se contorcendo, mulher gritando com voz rouca de homem, vinda sabe-se lá de onde; suspendida do chão por sabe-se lá o quê.

Mas nada disso, sabia a menina, nada disso fazia a sua vó gente ruim não. Muito pelo contrário. Apesar da carestia e da fome, a velha não cobrava era nada, apenas recebia o que o povo trazia de bom grado, e seguia do jeito que Deus queria, cuidando de si e da neta como quem cumpre um fado.

— Ande, menina! Cuide! — ralhou atrás de si a beata de preto, velha e enrugada, aproveitando-se pra despejar a sua frustração na única criança que andava por ali sem acompanhante.

Desorientada pelo safanão, Luzia deixou cair o terço bento o qual foi se aninhar justamente aos pés do Padre, que nervoso com o sacrilégio, catou o objeto como quem junta os pedaços do próprio Jesus Menino.

— Tome tento, moleca! — disse-lhe o homem entredentes, bem mais enfeitado que Luzia. — Só podia ser metida com aquela feiticeira mesmo.

A menina precisou segurar com força a mão do sacerdote, que bem dizer, quase lhe enfiou o Corpo de Cristo goela abaixo.

— Amém — lembrou-se de responder Luzia enquanto pedia, da forma que deu, a sua graça.

Angustiada com a hóstia pregada no céu de sua boca, Luzia já não existia ali. Cumprida a obrigação, o Padre lhe virou as costas em busca das outras crianças.

Aquilo pouco importou, pra ela a sua sina andava era cumprida. Mais do que a primeira comunhão em si, viera à Igreja em busca de sua graça, aquele presente sem limites concedido pelo próprio Deus a quem nunca ganhou nada.

Com a alegria transbordando no peito mirrado de criança, correu tropeçando nos sapatos grandes pra fora da Igreja.

Dali pra casa foi um pulo. Quase não falava, quase não cabia em si diante de tanta emoção. Só pensava na graça pedida. Ia demorar muito, será?

Chegou em casa anoitecendo e a dormida começou já dentro da carroça. Acordou com um homem lhe catucando e se viu bem em frente à avó, que orgulhosa, lhe carregou pra dentro de casa.

Luzia acordou com o sol lhe roçando a cara e a inconfundível zuada da novidade em lugar pequeno.

A senhora, no pé da cama, lhe trazia o terço bento, colocando-o em seu pescoço.

— Tu pediu a graça, num foi?

Luzia fez que sim com a cabeça.

Lá fora o barulho da multidão arrodiando a chegada de um grupo de jagunços, que puxavam de cavalo um bicho grande e morto arrastado, cobrindo a manhã azul de poeira.

— Pedi que uma rês do Coronel Teodoro morresse picada por cascavel.

Orgulhosa, a avó sorriu.

— Se apronte e traga uma tigela, logo vão cortar a carne.

*

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Publicado por

Márcio Benjamin é autor de romances e livros de contos de terror folclóricos (Maldito Sertão, Fome e Agouro), dramaturgo (Hippie-Drive, Flores de Plástico e Ultraje), roteirista de webséries e curtas-metragens, e agora trabalha no roteiro de seu primeiro longa-metragem, Quebrando o Gelo. Em 2021, o autor lançará um novo livro pela DarkSide Books.