— Graça.
Segurando com força a mão fria da filha morta, Graça se virou apenas quando lhe tocaram o ombro.
Os olhos, tão mortos quanto o corpo em cima da cama, não conseguiram dizer nada à mocinha de recado, que torcia as mãos aperreada.
— O povo chegou. De Seu Beto.
O povo de Seu Beto. Que medo tinha daquele carro preto que passava levantando poeira nas ruas estreitas do povoado. Só o nome já botava menino pra correr.
E agora?
Apertava os dedos gélidos da filha como se andasse presa, como se não pudesse sair dali.
Perdida, a mocinha virou as costas e foi embora, limpando o catarro inconveniente que insistia em escorrer.
E agora, Graça? E agora, mulher?
Por que não gritou, esperneou quando devia?
Oração resolve nada.
A mulher percebeu a respiração pesada ao pé da porta, e sentiu o peito apertar. Não precisou se virar pra saber quem era, e um ódio fundo lhe transbordou por dentro do peito.
— Vá simbora — disse, entre os dentes, imóvel.
— Graça, você precisa ter fé. O inocente tá aí fora.
Possessa, ela finalmente virou-se e encarou o marido como quem pudesse matar apenas com a força das palavras.
— Mande embora, senão mando eu. Esse condenado matou a minha filha, Zé. Matou a nossa filha. Eu não fui mãe suficiente pra segurar ela aqui. Mas pelo menos do corpo cuido eu. Ninguém vai tocar na minha menina mais.
***
— Danado é isso, Doutor? — perguntou o homem que entrou no consultório do posto com uma sacola na mão, sem pedir licença. As marcas de suor tomando espaço na camisa puída de trabalho no roçado, molhada como se tivesse levado um tiro.
— Boa tarde, Bio.
— Danado é isso que tu deu pra minha mulher, Dito? — perguntou o homem, abrindo o saco e espalhando as folhas.
— Nada demais, Bio. É planta de chá.
— Isso eu sei, sou menino não. Minha mulher anda fraca do juízo, precisa é de remédio, não de mato.
Benedito respirou fundo. Lembrou-se da mulher chegando no consultório desorientada, dopada, arrastando a sacola rosa de loja de roupa, cheia de caixa de remédio. Medicação forte, inexplicável para o caso, algumas proibidas.
— Sua mulher precisa daquilo tudo não, Bio.
— Precisa sim, Benedito, e se não vai ser você que vai dar eu consigo com a Prefeitura. Em respeito à finada Donana eu não vou dizer onde você enfie esse mato.
E saiu bufando igual animal brabo.
Foi aí que o cheiro do cachimbo tomou a sala e Dito percebeu a risada grossa no canto da parede.
— Tá rindo de quê, Vó?
Acocorada no canto da sala, o que foi Donana socava o fumo no cachimbo e pitava numa grande puxada.
— Issé um cavalo. Bruto. A mulher ficou doida por conta dele. Sem vergonha.
— Nem toda doença se cura com píula, isso a senhora me ensinou muito bem.
— Como é, Doutor?
Entretido que andava com a visita de Donana, Benedito nem percebeu a enfermeira na porta, fazia era tempo, a bem da verdade.
— Pensando alto aqui. — Respondeu, sem jeito.
— A sua vó faz muita falta por essas bandas — respondeu Lourdes, compreensiva; o corpo e, principalmente, a alma do postinho acanhado.
— Se faz. Mas nem sei como seria hoje. Outros tempos.
Num susto, o rapazinho franzino apareceu na porta, sem uma gota de sangue na cara.
— Dito, pelo amor de Deus, venha simbora! Graça ficou doida!
***
— Condenados do Satanás! Ninguém vai encostar na minha filha!
Aos berros na porta do quarto, Graça brandia a faca que brilhava sua lâmina como se cortasse o ar.
— Tenha calma, Graça, pelo amor de Deus, solte essa faca, você vai acabar machucando alguém — pediu o marido, em pânico.
Ao redor da cena, os funcionários de Seu Beto arrudiaram Graça, como numa tocaia de clareira.
— Graça?
A voz doce e suave rebateu-se num silêncio de igreja, jogado por dentro dos corredores do hospital. Com uma firme delicadeza, o pequeno tomou o seu lugar naturalmente, como sendo Moisés afastando as águas.
— Paz, minha irmã — disse o inocente, em um tom de voz sereno e um olhar profundo, os quais não combinavam com o seu corpo mirrado.
— Vá simbora, peste! Condenado! Você matou a minha filha!
— O tempo da menina se esgotou por aqui, é nosso destino deixar ir quem precisa.
— Você não deixou ela tomar os remédios! Trancou-se dentro do templo!
— Ela precisava de oração, não de medicação. Nem tudo a gente resolve com remédio. A menina andava doente era da alma.
— Cale a boca! Assassino.
— Graça…
Com o primeiro passo dado, Graça angustiou-se, apontando a faca pro próprio pescoço.
— Chegue nem perto!
Angustiado, Dito chegou com Lourdes. Acostumado com rompantes como aquele, sabia que não adiantava perguntar.
— Graça, sou eu.
— Chegue perto não!
— Vou não, pode ficar calma.
Em um tom de voz doce, Benedito se aproximava quase sem se perceber, com os olhos fixos nos da mulher.
Com a mão à frente, em uma oferta de paz, mas também para chamar sua atenção, chegou mais perto.
— Eles mataram a minha filha, Dito. Mataram Clarinha.
Já a menos de um braço de distância, Benedito arriscou a palma aberta, como quem pede, e já sentia o frio da lâmina nas mãos, quando um dos funcionários de Seu Beto adiantou o passo.
— Ninguém leva minha filha! — berrou Graça, enquanto riscava fundo a palma de Dito.
Aproveitando a desatenção, puxou-lhe pelo punho e afundou no braço a agulha preparada, escondida na outra palma.
***
— Tempos sombrios se avizinham, meus irmãos. As trevas andam por aí, rastejando ao nosso redor como serpentes!
Absorta, a multidão acompanhava muda a pregação do inocente, e já achavam linda aquela voz tão adulta transpassada por dentro de uma garganta de criança.
— Vão cobrar o preço, vão vir nos tentar, e a gente vai precisar andar junto, de mãos dadas, com força pra resistir!
As palavras ecoavam nas paredes das ruínas da fábrica, um templo improvisado; um lugar de qualquer jeito, como dizia o inocente. Sem cruz, altar ou santo. Deus anda por todo canto, era o que dizia.
Bovina, a multidão estava plenamente hipnotizada. Confiante, Graça sorria para o marido. A filha doente iria se curar. Sentia no peito.
— Chegue, minha irmã. Traga sua dor aqui pra perto da minha.
Calaram-se quando Clarinha se aproximou, envergonhada.
Com um sorriso no rosto de menino, aproximou as mãos da cabeça da menina e fechou os olhos.
Foi quando Clarinha gritou.
***
Sentado em frente à Graça, Dito apenas a observava tomar um interminável café no único restaurante da cidade. Paciente, saberia que o silêncio era a melhor forma de alguém falar.
— Aquele condenado matou a minha filhinha, Dito.
Em resposta, o outro apenas lhe segurou a ponta dos dedos.
— Foi ele, eu sei que foi ele. A menina andava doente sim, mas ia se curar, ia melhorar. Só precisava de medicação. Depois que fez a reza, aí nunca mais. Definhou a olhos vistos, acabou em couro e osso. Aí ele se desesperou. Trancou a menina lá na fábrica. O povo lá fora, rezando, rezando. Doentes. A culpa é minha — a voz embargou e Graça deixou as lágrimas tomarem de conta.
— Não é culpa sua, Graça.
— Essa cidade, Dito. Tu morava aqui antes. Depois que esse menino chegou, tu não notou nada diferente?
Não tinha como não notar. Ainda que sendo de interior, era muito silêncio demais. As pessoas não se cumprimentavam, andavam se arrastando pelo meio das ruas abafadas, tão amarelas quanto a poeira que sujava tudo.
Ao lado, como a suportar o falado, uma mulher enchia sua xícara de café. Cinco. Sete. Dez. Quinze colheradas de açúcar que transbordavam o líquido escuro. E mexeu.
Tlim tlim.
— É alguma coisa na reza, na reza que ele faz no povo. Mas eu vou me embora daqui, Benedito. E vou levar Clarinha comigo.
A mulher ao lado parou a colher. E quase rápido demais, brandiu a faca de mesa e partiu pra cima de Dito. Atento, o médico afastou-se a tempo de sentir o vento rente ao nariz e a faca acabou fincada na mesa.
— Graça, venha, vamos sair daqui! — gritou Benedito, enquanto empurrava a mulher.
***
— A noite é essa, irmãos. A hora é agora. O mal se avizinha, a ruindade amarga! Tá doida pra espalhar seu fel dentro da gente, mas a gente não vai deixar. O nosso exército de fé precisa da força de cada um de nós. Vocês estão preparados? — perguntou a voz infantil tomando, lançando-se decidida por dentro do grito de todos.
***
Atento, Dito estranhou o silêncio no posto. Angustiou-se ainda mais ao entrar quando percebeu o rastro de sangue vindo da mesa de Lourdes, que cabisbaixa, sorria docemente.
O inconfundível cheiro ferroso já tomava todo o ambiente, e Dito sentia dentro do peito o coração descompassado.
— Lourdes?
— O mal, doutor, o mal anda nos nosso calcanhares.
Dito perdeu a respiração ao perceber que a enfermeira cortava com firmes tesouradas já o seu quinto dedo.
***
As mãos do inocente esquentaram ao encostar na cabeça da menina. Clarinha entendeu tarde demais o que tinha acontecido. Sentia todas as lembranças, os sentimentos, e o que restava do juízo passar pra o menino, como sendo assim um pedaço de pau levado pelo rio. E percebeu afinal, enquanto ainda tinha um resto de pensar, quem era na verdade aquele Messias.
E a última coisa que viu antes da consciência se apagar como uma lâmpada, foi o menino sorridente.
Saciado.
***
O freio brusco do carro subiu a poeira vermelha da tarde, em frente ao prédio de letreiro grande.
— Fique aqui, Graça, eu vou buscar a menina. Se der alguma coisa errada vá simbora! Não olhe pra trás.
Sem esperar resposta, Dito abriu a porta e correu pro hospital.
Com o corpo tremendo preparou-se pra lutar, mas se não havia ninguém?
Atento, foi até o quarto. Deserto.
— Benedito! — ouviu Graça gritar.
Perdeu a fala na boca quando viu pela janela Graça cercada do povo da cidade, desorientados sim, mas armados de tudo quanto era troço de fazer mal.
— Fiquem calmos, estou saindo, não façam nenhuma besteira!
Minha Vó, me ajude, pelo amor de Deus.
Angustiado, Dito abriu a porta devagar e parou os olhos nos de Graça, com uma faca afiada apontada pro pescoço pelo próprio marido.
— Se arrependa, Benedito. Todo tempo é em tempo.
Mas e havia? Houve alguma vez essa Vó depois de morta?
O médico arrepiou-se quando percebeu, abrindo espaço na multidão o inocente, de mãos dadas com Clarinha. Viva.
Graça se debateu nos braços do marido e o nó se afrouxou, à ordem do inocente.
Correu pra cima da filha e abraçou com força, prometendo nunca mais a abandonar de novo.
— Filha, venha, a gente vai simbora daqui…
Mas antes que pudesse terminar a frase, sentiu a ponta dos dedos da menina lhe tocar as têmporas, como a se perder por dentro do juízo, até que não lhe restasse nada.
***
Sentado na praça, junto com os outros, Benedito estava em frente à televisão. Há quanto tempo, não sabia. O corpo dolorido e dormente já não conseguia mais ficar em pé. Os olhos secos lhe ardiam enquanto a baba descia grossa na camisa branca.
No programa o inocente e sua esposa também santa, juravam promessas de uma terra divina. Mágica.