Se você cresceu com uma educação cristã, deve ter aprendido que o Natal celebra o nascimento de Cristo e a Páscoa a sua ressurreição. Mas se for isso mesmo, por que estas datas eram celebradas em tempos pré-cristãos?
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Desde os primórdios da humanidade, povos estabeleciam suas relações com o divino, por meio de magia, adivinhações, rituais e crenças que podiam variar bastante de acordo com o lugar. Mas algo aconteceu ali entre os séculos III e IV para que tal pluralismo de fés e costumes diminuísse consideravelmente: a imposição do cristianismo pelo Império Romano.
Basicamente, o que a Igreja fez foi separar todas as crenças em duas caixinhas: cristão = bom, qualquer outra coisa = mau. Tudo o que não fosse incluído na adoração divina segundo os dogmas cristãos era considerado perverso, demoníaco, oculto.
Grimório Oculto guia o leitor pelos pontos mais importantes da história do ocultismo, que muito se mistura à história das sociedades ocidentais. Entre dias de luta e dias de glória, o livro narra a perseguição iniciada na Europa há quase dois mil anos e que tem reflexos até os tempos atuais.
Porém, a tarefa dos romanos cristãos não foi tão simples a ponto de simplesmente empurrar a sua religião a povos com crenças e práticas bem diferentes. A conversão de saxões, anglo-saxões e escandinavos enfrentou bastante resistência e soluções mais políticas precisaram ser adotadas.
Resumindo, os romanos precisaram ceder e acabaram incorporando algumas das crenças pagãs à sua própria fé, com algumas adaptações, é claro. Separamos algumas delas a seguir:
1. Tumbas, artes e templos
Pagãos e judeus tinham o hábito de decorar seus túmulos, um costume que foi adotado pelos cristãos. Com isso, foi criada a primeira arte em catacumbas no subsolo de Roma. Os temas da arte foram adaptados, incluindo a interpretação de que a alma humana pode ser alçada à vida eterna – algo inédito para pagãos e judeus.
Embora muitos elementos tenham sido adicionados pelos critãos, como a imagem do Bom Pastor e do batismo, a representação das orantes (mulheres rezando com as mãos para cima) provavelmente veio da arte pagã. Outra adaptação diz respeito às conchas colocadas sobre as cabeças das imagens dos mortos, que para os cristãos viraram halos.
Além disso, muitos templos sagrados do paganismo foram convertidos para o cristianismo. O exemplo mais famoso é o do Panteão, em Roma, que foi de “templo de todos os deuses” para “templo de todos os santos”. Da mesma forma, o Carvalho de Thor, uma árvore sagrada para os pagãos germânicos, foi cortada e sua madeira foi utilizada para construir uma igreja dedicada a São Pedro.
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2. Teologia cristã
Santo Agostinho foi quem basicamente sistematizou a filosofia cristã, após ter se convertido do maniqueísmo – o conceito religioso de que existem duas forças opostas, como o bem e o mal. Muito da concepção que o mundo ocidental tem do maniqueísmo vem da propaganda contrária feita pelo próprio Agostinho. Ele publicou uma obra chamada Contra Acadêmicos, em que usa o conceito estoico de Cícero sobre as paixões para interpretar a doutrina de São Paulo Apóstolo sobre pecado e redenção.
A influência do paganismo também pode ser observada em teologias não ortodoxas, como o catarismo, que acreditava que o mundo tinha origens satânicas. Existem teorias de que esta crença também estaria ligada a ideias maniqueístas, mas existem poucos registros para se estabelecer tal ligação com mais confiança. Basicamente, este conceito incorporou o dualismo entre bem e mal na teologia cristã, dando os contornos para as definições de pecado.
3. Transubstanciação
Você já parou para pensar que o processo de eucaristia do catolicismo é um tanto canibalístico? Durante a missa, um padre transforma pão (hóstia) e vinho em corpo e sangue de Cristo. O ritual é chamado de transubstanciação, mas o mais estranho vem em seguida: as pessoas ingerem o corpo e o sangue de Cristo.
Rituais semelhantes eram praticados no submundo das “religiões misteriosas” do mundo greco-romano. Em algumas destas crenças ocultas, os celebrantes compartilhavam uma refeição em que as pessoas simbolicamente se alimentavam da carne e do sangue de seu deus. Existem registros de rituais deste tipo no mitraísmo em 300 a.C. e no Egito Antigo, quando sacerdotes consagravam bolos como se fossem a carne do deus Osíris, que também eram ingeridos em seguida.
4. Dias da semana, feriados e carnaval
A subsistência das comunidades primitivas era completamente dependente da fertilidade do solo, então muitos dos símbolos e festivais pré-cristãos tinham ligação com a relação do ser humano com a natureza. O solstício de verão se tornou o Natal, adotando as festividades do Saturnália, uma comemoração romana da mesma época.
Nos primeiros três séculos d.C. o cristianismo nem celebrava o nascimento de Jesus. Aniversários eram comemorações pagãs e ninguém realmente sabia quando o messias havia nascido, o que levou muitos sacerdotes a recusarem tal ideia. A própria definição da data gerou alguns debates, com defensores do dia 6 de janeiro e de 25 de março, coincidindo com o equinócio de primavera.
Lá pelo ano 354, o dia 25 de dezembro foi incluído no calendário romano como sendo o nascimento de Cristo. Alguns dizem que a data foi definida para competir com o Saturnália, outros, para aproveitar as comemorações dos festivais de inverno e há ainda quem defenda que batizar os festivais com um significado cristão poderia conter a bebedeira do período.
De maneira semelhante, a Páscoa coincide com as festividades de Ostara, celebradas no equinócio de primavera, em comemoração à fertilidade e do triunfo da luz sobre a escuridão – a ideia de ressurreição faz uma alusão bem justa. O próprio carnaval, celebrado quarenta dias antes da Páscoa, veio do Lupercália, um feriado que honrava o deus romano da fertilidade e era marcado por banquetes, bebedeira e orgias.
Muitos nomes de meses e de dias da semana, além do próprio conceito de uma semana de sete dias, foram “emprestados” do paganismo romano. Antigamente a nomenclatura era uma homenagem aos deuses pagãos (Sol, Lua, Marte, Júpiter, Saturno, Thor), mas no português ganharam apenas uma sequência de dias em alusão à Semana Santa, acrescidos por “feira”, local onde o comércio girava. Preservando o domingo como “dia do Senhor” no início da semana, os demais dias seguiram a sequência, acabando no sábado, cujo nome veio do sabá judeu.
5. Adoração de deusas na forma de santas
Oficialmente, o catolicismo é uma igreja monoteísta, porém, permite a adoração de outras figuras, como a dos santos. Aliás, a própria deusa, presente em vários cultos pagãos, ganhou uma nova roupagem na figura da Virgem Maria.
Com exceção da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), a Virgem Maria é a figura santa mais importante para os católicos. Suas virtudes reúnem qualidades de muitas deusas e figuras de adoração pré-cristãs, como Ártemis, Deméter, Diana, Hera, Ísis e Vênus. Aliás, existem evidências de que imagens da deusa egípcia Ísis embalando o deus Hórus foram reaproveitadas para representar a Virgem Maria segurando o Menino Jesus.
Outro exemplo de deusa que ganhou uma nova roupagem foi Brígida, que os celtas veneravam para fertilidade e cura. Ela é provavelmente o principal exemplo de sobrevivência no catolicismo, convertida como Santa Brígida da Irlanda, mas que mantém muitos de seus atributos originais.
Todas estas apropriações do paganismo para o cristianismo mostram como as práticas do ocultismo são muito mais presentes do que as pessoas tendem a acreditar. Tradições milenares não foram simplesmente queimadas junto de seus praticantes, elas se adaptaram e ganharam uma nova cara para se manter vivas.
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