Hellraiser: a importância do novo inferno que nos foi revelado

A mente macabra de Clive Barker criou um universo de dor e prazer do qual não podemos escapar. Quando você abre a porta do inferno, não há mais volta.

Falar sobre um clássico é sempre um desafio, e falar de um clássico como Hellraiser é semelhante a um mergulho no inferno — e sem malha de proteção.

Você se lembra de quando ouviu o nome de Clive Barker pela primeira vez? Lembro de uma citação de Stephen King na capa de um VHS bem estranho. Ao que parecia a um primeiro olhar, o personagem principal era um homem pálido como a lua, de olhos penetrantes, repleto de pregos pelo rosto. Nariz e bochecha; testa e queixo; a cabeça toda. Ele também usava couro e segurava uma caixa iluminada, algo que deixava qualquer visitante curioso desde a primeira olhada. Todos cometemos o mesmo erro naquela época: abrir a porta do inferno.

Pesadelos, insônia e as imagens de corpos “desapodrecendo” em cada canto escurecido do quarto eram relatos comuns de quem se entregava ao universo de Barker. Hellraiser não era apenas um filme de terror: era algo absolutamente chocante, visceral e profano.

Hellraiser, filme de terror de Clive Barker

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E tão obviamente quanto aquele primeiro erro, é claro que não nos saciamos com o que vimos na tela. Nos Livros de Sangue, provavelmente sua obra em papel mais conhecida, lemos seus primeiros contos, maculamos nossas almas, e continuamos procurando por mais sodomias, sangue e criaturas do além-mundo.

Stephen King acertou quando disse:

Eu vi o futuro do horror… e seu nome é Clive Barker.

Clive era mesmo o futuro dos anos 1980. Uma nova realidade sem véus, cuidados ou disfarces; um mundo de segredos taciturnos que se tornava cada vez mais revelador e indigesto. Em Barker, a única obviedade é a dor e o incômodo, e, assim como outro deus da escrita, H.P. Lovecraft, uma estranha beleza permeando cada palavra anatomicamente proferida. Barker é dor, e como toda dor, ele também é poesia.

Hellraiser, filme de terror de Clive Barker

A adaptação cinematográfica dirigida pelo próprio Barker é uma primeira tentativa que, senão perfeita, é completamente irretocável. Clive Barker também inova em seus cenobitas que, como a própria raiz do nome, representam uma ordem religiosa (embora profana) transcendental. Deuses e Demônios, santos e pecadores, torturadores e cobaias. Nos cenobitas, a dualidade é tão marcante que chega a invadir seus sexos. Principalmente no livro e nas concepções originais de Barker, a distinção não existe, e quando existe, representa apenas uma ferramenta que mistura tentação, prazer e horror.

Sem lágrimas, por favor. É um desperdício de bom sofrimento.

Ainda assim, nada na concepção de Hellaiser foi exatamente fácil, ou mesmo tradicional. Trouxemos alguns detalhes para explicar melhor como o inovador e desafiador Hellraiser torceu o inferno para conseguir chegar às telas.

Como o pai dos cenobitas contou ao The Guardian: “Em meados dos anos 80, eu tinha duas abominações cinematográficas feitas a partir de minhas histórias. Parecia que Deus estava me dizendo que eu deveria dirigir. Quanto pior eu poderia ser? Eu disse a Christopher Figg, que se tornou meu produtor: ‘Qual é o mínimo que eu poderia gastar e esperar que alguém contratasse um diretor pela primeira vez?’. E ele disse: ‘Abaixo de um milhão de dólares. Você só precisa de uma casa, alguns monstros e atores desconhecidos’. Meu livro, Hellraiser, que na maioria das vezes acontecia em uma casa, se encaixava nesses parâmetros. A empresa de Roger Corman, New World — que concordou em financiar um filme por US $ 900 mil — disse claramente que iria direto para o vídeo.”

Hellraiser, filme de terror de Clive Barker

Não que isso tivesse resolvido todos os problemas, afinal, segundo Barker, experiência em direção cinematográfica passava longe de seu currículo.

“Na semana anterior às filmagens, fui à biblioteca de Crouch End, onde morava em Londres, para conseguir um livro sobre direção. Eles tinham um — mas estava emprestado. Felizmente, a equipe atendente foi muito gentil comigo. Você só pode ir tão longe na escuridão se todos estiverem a bordo. Eu tinha Richard Marden, que havia trabalhado com David Lean, como editor, e Bob Keen, que tinha feito efeitos especiais em Star Wars e surgiu com a cena da ressurreição de Frank. Nós tivemos um bom ritmo de trabalho.”

Hellraiser, filme de terror de Clive Barker

Resolvidos os primeiros impasses, chegou o momento de Barker mostrar suas ferramentas.

“O sexo é um ótimo nivelador. Isso me fez querer contar uma história sobre o bem e o mal em que a sexualidade era o tecido conjuntivo. A maioria dos filmes de terror ingleses e americanos não era sexual ou provocante — era um bando de adolescentes fazendo sexo e depois sendo mortos. Hellraiser, a história de um homem levado a buscar a experiência sensual suprema, tem um senso muito mais distorcido de sexualidade. A aparência dos cenobitas, como os alfinetes na cabeça do líder, foi inspirada nos clubes S&M (clubes com frequentadores e manobras sadomasoquistas). Mas eu estava emocionalmente inspirado por eles também. Na escala deslizante do S&M, eu sou provavelmente um 6. Havia um clube underground chamado Cellblock 28 em Nova York que teve uma noite S&M muito difícil. Nenhuma bebida, nenhuma droga, eles foram muito diretos. Foi a primeira vez que vi pessoas furadas por diversão. Foi a primeira vez que vi sangue derramado. A atmosfera austera definitivamente informou a Pinhead: ‘Sem lágrimas, por favor. É um desperdício de bom sofrimento!’.”

Quanto a Doug Bradley, que encarnou o temível e amado Pinhead, ele diz que o primeiro papel que Barker lhe ofereceu foi um como um dos carregadores de colchão. Mas Bradley não conseguiu, para nossa sorte, parar de pensar nesse “cara sem nome, com os pinos na cabeça”. Ainda assim, Doug também pagou o preço pelo prazer de emprestar sua carne ao cenobita.

Doug Bradley aplicando a maquiagem de Hellraiser

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“No começo, a maquiagem levou cinco ou seis horas para ser aplicada, apesar de terem diminuído depois para três ou quatro. Na primeira vez que usei, sentei-me na frente do espelho tentando fazer amizade com esse novo rosto, lendo algumas linhas e vendo onde elas me levaram. A maioria das minhas decisões sobre interpretar Pinhead foram feitas lá então. Eu tinha uma sensação de poder, de majestade, de uma espécie de beleza. Sua ameaça está implícita: veja o que eu fiz para mim mesmo — agora imagine o que posso fazer com você.”

Nós não só imaginamos como revivermos esse pesadelo cinematográfico em outras sete sequências, pilhas de HQs e dois romances, embora o eco daquele VHS ainda se perpetue nas mentes que presenciaram a escalada do inferno de Clive Barker.

Hellraiser se tornou um clássico porque nos perturba profundamente. Se não o faz pelas imagens terríveis, ele nos perturba pelo sexo sem barreiras morais, pelo apetite humano. Hellraiser nos diz até que ponto somos capazes de chegar quando nossos mais profundos desejos são experimentados, mas não completamente saciados. E o que melhor representa um clássico do horror senão algumas poucas horas de intenso incômodo que nos fazem ansiar por mais, mais e mais?

Hellraiser, filme de terror de Clive Barker

Exploradores das regiões ocultas da experiência. Demônios para alguns. Anjos para outros.

Fato é que mesmo os que torcem os narizes, dizendo que Stephen King exagerou em sua citação a Barker, precisam aceitar que, se Clive não representou o futuro previsto do horror, sua mente inovadora certamente abriu as portas da imaginação para que jovens artistas do gênero desafiassem as normas morais e se encorajassem em novos e (por que não?) ultrajantes títulos. E isso inclui filmes, teatro, games, quadrinhos, e, obviamente, livros.

E falando um pouco mais nesses últimos, a primeira editora brasileira inteiramente dedicada ao terror, DarkSide Books, publicou Hellraiser em uma edição que arrancou suspiros do próprio Clive Barker. Posteriormente, a Caveira também sacramentou a saga com a publicação de Evangelho de Sangue, e nos presenteou com novos mergulhos nas maldições de Candyman.

Agora, se me permitem compartilhar um pequeno segredo… dizem, no Inferno, que vem muito mais Clive Barker por aí.

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A beleza macabra do horror me conecta com o Outro Lado. Ofereço abrigo espiritual aos irmãos e irmãs da fazenda e acordo todos os dias às 3h da manhã. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.