Mantenha as mãos à vista: O universo dos mortos nas telas

Através da reflexão sobre necropolítica no audiovisual, Caroline Meirelles demonstra como o terror cotidiano pode se comparar ao gênero fílmico do terror.

Por Caroline Meirelles

“A cidade do colonizado (…) é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada.” (Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, 1991, p.39)

Vamos começar esta breve reflexão pensando nos resquícios dos traumas coloniais residentes ainda em nossa sociedade.

A demarcação colonial era uma afirmação de controle físico e geográfico, por parte do Estado Invasor sobre o espaço colonizado. A produção de fronteiras, hierarquias raciais, de classes e extração de recursos deram sentido e corpo ao imaginário social, que mais tarde se veriam ultrapassando os limites atuais das garantias constitucionais e se estenderiam até ramos mais específicos e poucos explorados politicamente na sociedade, como, por exemplo, a cultura.

Demarcando as bordas desta discussão aos corpos negros — pois as políticas de necropoder não necessariamente estão ligadas a grupos raciais — pensemos na estrutura forjada e sistematizada para matar, excluir e marginalizar tais corpos e como os discursos audiovisuais perpetuam massivamente esse ideal prazeroso da hegemonia branca, e o terror cotidiano de quem se encaixa nestes corpos melânicos.

No Brasil, onde 54% da população se declara negra, a população negra tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassinato do que os brancos, de acordo com o IBGE. 75% das vítimas de homicídios no país também se refere à população negra. Na última década, o índice de homicídio de não negras caiu 7,4%. Já de mulheres negras cresceu 22%.

Ouso dizer que o terror cotidiano pode-se fazer paralelo ao gênero fílmico de horror, além de poder surtir como uma proposta de documentário ensaiado — pois nenhuma violência retratada em tela e aplaudida em massa pelos consumidores brancos é meramente fictícia ou inventada.

“(…) A expressão máxima da soberania, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.” (Achille Mbembe, Necropolítica, 2018, p.5)

Quando essa soberania se transforma em apoio imagético através de símbolos conhecidos e consumidos como o audiovisual, chamamos de apologia, transcrição e violência simbólica. Um sistema de produção ou uma indústria de produtos audiovisuais, majoritariamente comandada por brancos, se alinha aos discursos políticos, sociais cotidianos e até mesmo de senso comum, para que não se perca a ideia de extermínio e assassinato deste povo.

Não é raro no repertório mundial do cinema, ou até mesmo em territórios nacionais, obras que colaboram e narram irresponsavelmente as condições moribundas e a perpetuação da escassez de métodos dignos para manutenção de vida dos corpos negros. Sejam indiretamente fomentados através da negligência, como falta de saneamento básico, ou apelando para a guerra com armas de fogo como política de supressão das vidas inimigas do sistema eugênico.

Por trás das câmeras a soberania, que é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é, se reformula em permissão ou negação dos corpos negros que viverão ou chegarão intactos e com dignidade até o final da trama.

O corpo em cena é discurso e o corpo negro é, em sua maioria das vezes, quando conduzido por não pares, sinônimo de morte, perigo, um corpo a ser detido, o inimigo, ausência de humanidade e todos os antônimos estruturais do branco. 

Confira abaixo uma lista de filmes e séries que ilustram a necropolítica, para uma compreensão do assunto abordado.

O Ódio que Você Semeia

The Hate U Give, 2018 // Starr, uma jovem, presencia a morte de seu amigo de infância chamado Khalil pelas mãos de um policial. Agora, dividida entre as várias pressões de sua comunidade, Starr precisa encontrar sua própria voz e se erguer para o que acha ser o certo. O filme foi dirigido por George Tillman Jr., baseado no livro de mesmo nome de Angie Thomas.

Seven Seconds

Seven Seconds, 2018 // Quando um jovem negro é brutalmente ferido por um policial, a população negra e o resto da força policial branca entra em diversos conflitos. Série com dez episódios criada por Veena Sud. Disponível na Netflix.

American Son

American Son, 2019 // Dirigido por Kenny Leon, um casal separado precisa se unir em uma delegacia quando seu filho adolescente é dado como desaparecido. Disponível na Netflix.

Última Parada 174

Última Parada 174, 2008 // Dirigido por Bruno Barreto com roteiro de Bráulio Mantovani, o filme conta a história real de um ônibus que foi sequestrado no Rio de Janeiro nos anos 2000.

Tropa de Elite

Tropa de Elite, 2007 // Em 1997, no Rio da Janeiro, o Capitão Nascimento precisa encontrar um substituto para sua posição enquanto tenta lidar com o traficantes de drogas. Dirigido por José Padilha, baseado no livro de André Batista.

Carandiru

Carandiru, 2003 // Baseado no livro de Dráuzio Varella, Carandiru conta a história do trabalho do médico com o trabalho de prevenção contra a AIDs no que, até então, era o maior presídio da América Latina. Além da superlotação e da precariedade do local, o médico ainda aponta os dramas pessoas e as tentativas de revolta dos detentos. Filme dirigido por Héctor Babenco.

Faroeste Caboclo

Faroeste Caboclo, 2013 // Dirigido por René Sampaio e baseado em uma música do Legião Urbana, conta a história de João de Santo Cristo que parte para Brasília para tentar a sorte de ter uma vida melhor.

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Caroline Meirelles é cenógrafa e diretora de arte. Em seu currículo contam doze curtas metragens, um longa, um média e dois videoclipes. Também é palestrante sobre cinema e raça e atua pela comunidade nacional dando aulas sobre este assunto em universidades e escolas públicas, além de pesquisar cinema e relações étnicas raciais.