O remake de A Múmia feito por Clive Barker que quase aconteceu

No começo dos anos 1990, Clive Barker planejava um remake de A Múmia que seria maravilhoso e estranho como tudo que o artista faz. Saiba mais sobre essa história.

O final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 viram diversas tentativas e possibilidades de remakes de filmes clássicos da Universal. Os filmes da Hammer, que tinham temas semelhantes aos da Universal, atingiram seu ápice entre os anos 1960 e 1970; e as comédias dos anos 1980 que parodiavam esse marco dos filmes de terror, como Deu a Louca nos Monstros e até mesmo A Hora do Espanto, de certo modo, já começavam a perder a força e o apelo com o público.

Então, esse período parecia propício para uma nova leva de filmes dedicados aos nossos monstros mais queridos. Não estamos falando exatamente de um Drácula de Bram Stoker do Coppola, seria algo mais próximo de O Lobisomem, de 2010, dirigido por Joe Johnston — ou, levando em consideração os projetos que nunca saíram do papel, algo como A Forma da Água, de Guillermo del Toro.

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Uma das histórias mais curiosas sobre esses remakes é a versão de Clive Barker para A Múmia. Sinceramente, quanto mais descobrimos sobre o assunto, mais gostaríamos que essa versão tivesse sido concretizada. A Macabra explica tudo sobre essa história para você.

Primeiro, A Múmia de 1932

Lançado em 1932 e dirigido por Karl Freund, o filme teve seu roteiro feito por John L. Balderston, um dos maiores roteiristas do período para a Universal, responsável por adaptar as peças de Drácula e Frankenstein para o estúdio, além de tantos outros trabalhos. Mas o próprio Balderston adaptou seu roteiro de outra obra. Intitulado Cagliostro, o pequeno tratamento, um pitch de nove páginas, foi escrito por Richard Schayer e Nina Wilcox Putnam. A dupla lera sobre a vida de Alessandro Cagliostro, o nome utilizado pelo ocultista italiano Giuseppe Balsamo, que viveu no século XVIII. A história original contada por Putnam e Schayer era sobre um mago que sobreviveu por 3000 anos, e se passava em São Francisco. 

Balderston adaptou essas nove páginas de história e transformou em algo bastante diferente. No filme, Boris Karloff interpreta Imhotep, uma antiga múmia egípcia. Imhotep foi morto por tentar ressuscitar sua amada, Anck-es-en-Amon. Depois de ser descoberto e trazido de volta por um time de arqueólogos, Imhotep se disfarça sob o nome de Ardeth Bey e volta a procurar por sua amada, que ele acredita ter reencarnado no mundo moderno.

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Se a história te parece familiar mesmo que você nunca tenha visto o filme, bom, você está certo. É quase a mesma história de A Múmia de Stephen Sommers, lançado em 1999. Mas enquanto o tom do filme de Sommers é muito mais voltado para a ação — e nosso foco é 100% atraído pela brilhante química entre Rachel Weisz e Brendan Fraser —, o filme de Freund tem o foco em Imhotep, ou Ardeth Bey, e sua procura por sua amada, e seu tom é mais semelhante ao dos filmes do período. Ou seja, não temos grandes tempestades de areia e fugas alucinadas.

A Múmia de 1932 pode, sim, ter sido um pouco apagado em relação aos seus companheiros monstros da mesma época. Quando pensamos em Monstros da Universal, é normal que pensemos primeiro em Drácula, Frankenstein e sua Noiva, depois na Criatura de O Monstro da Lagoa Negra, o Lobisomem, e, enfim, na Múmia. Mas ele merece um pouco mais de carinho, principalmente pelo trabalho sempre brilhante de Karloff.

Hellraiser III: o responsável por tudo

Esse quase remake de A Múmia nasceu, na verdade, por causa de Hellraiser. Barker, de certa forma, esteve envolvido na franquia Hellraiser até o quarto filme. E apesar de ter ficado bastante frustrado com Hollywood por causa de Monster – A Ressurreição do Mal (1986) e, mais tarde, com o que fizeram com sua versão de Raça das Trevas (1990), Hellraiser ainda era um trabalho criativo que fazia Barker sentir alegria — mas isso logo mudaria também, graças às disputas de visão com os estúdios.

Apesar do espaço de tempo entre as produções de Hellraiser II: Renascido das Trevas, lançado em 1988, e Hellraiser III: Inferno na Terra, de 1992, Barker já estava pensando em uma história para a terceira parte da franquia assim que a segunda terminou de ser feita — de acordo com Peter Atkins, na verdade, antes mesmo de que Hellraiser II fosse gravado, Barker conversou com ele sobre escrever o roteiro do terceiro.

Atkins, Ashley Laurence e Clive Barker.

Atkins conta que foi em 1987 que Barker e Chris Figg, que trabalhava para a produtora de Hellraiser, se aproximaram de Atkins para que ele escrevesse o roteiro da terceira parte da franquia. Foram no mínimo seis roteiros para que Atkins chegasse ao que vemos em Inferno na Terra — e ainda assim não é exatamente o roteiro de Atkins que vemos na tela. Mas é a primeira versão, o pensamento inicial de Barker para o filme, que vai nos levar para onde queremos ir.

Ambientado parcialmente no Antigo Egito, nós descobriríamos que o primeiro Cenobita era, na verdade, um Faraó bastante curioso. Nos anos 1990, um grupo de escavadores de um museu norte-americano descobriria os restos mumificados desse faraó e realinharia alguns dos tesouros encontrados enterrados com ele, que formariam um tipo de pirâmide. O padrão se formaria e seria semelhante ao da Configuração do Lamento. Quando Barker contou a ideia para Atkins e Figgs, todos gostaram. Menos o próprio Barker.

Um dos primeiros filmes de Barker, The Forbidden é um curta de 1978 que contava com Peter Atkins atuando. Na foto, Atkins é maquiado (quase como uma múmia) por Barker.

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Mais tarde, a ideia de conhecermos mais sobre o passado da Configuração do Lamento e dos Cenobitas seria utilizada em Hellraiser IV: Herança Maldita, de uma forma bem diferente do que Barker havia imaginado originalmente. Mas essa coisa toda do Antigo Egito, de múmias, de descobertas… bom, isso permaneceu com Barker. 

O remake que não aconteceu

Essa ideia de Hellraiser III surgiu em 1987, mas foi no começo de 1990 que Barker e A Múmia meio que se encontraram. As primeiras versões dessa ideia contaram, em determinados momentos, com a participação de Mick Garris e George A. Romero. No site oficial de Clive Barker há até um trecho do tratamento apresentado por Barker:

“Rick tenta se levantar quando Katherine aparece, de seios nus, mas ele está literalmente mumificado do pescoço para baixo. Katherine coloca seus lábios na região do esterno de Marietta. Marietta estremece e transpira.

‘Eu sou a primeira filha terrena das Sythis…’, diz ela.

Os tentáculos, finos como fios, aparecem ao redor da parte inferior de sua barriga, e acariciam o rosto de Katherine conforme ela cai de joelhos na frente de Marietta. Rick começa a gritar de horror, e nós focamos em seu rosto conforme as sombras do acasalamento de Katherine e Marieta brincam em suas faces.

‘Nós nos espalharemos agora como uma nova nação’, diz Marietta, ‘e o fim da espécie humana começou.’

Pape entra em cena, e começa a cobrir o rosto de Rick, enchendo sua boca de terra antes. Nosso herói se tornou a Múmia.

Naquele período, ainda em 1990, Barker falava bastante sobre o seu remake. Primeiro, chamando realmente de remake. Depois, dizendo que não era exatamente um remake. O que ele pretendia, de acordo com suas próprias palavras, “eu estou refazendo isso de uma forma que serão tão distante de A Múmia com Karloff como a versão de A Mosca de David Cronenberg foi”.

Mick Garris, que trabalhou com Barker outras vezes além do roteiro de A Múmia. Barker ilustrou a capa do livro de Garris, A Life in Cinema.

E realmente. Do que sabemos até hoje desse remake, seria uma coisa completamente diferente de tudo que já vimos. E teria sido incrível. Em 2021, quando esteve com Mick Garris no podcast Post Mortem, ambos conversaram um pouco sobre esse filme. O site Bloody Disgusting transcreveu uma parte da conversa, da qual nós traduzimos abaixo:

“Tinha a primeira mudança de sexo… transexual… então estávamos fora da curva. Então tinha um garotinho nascendo… um garotinho nascendo no começo da narrativa, que obviamente é importante na narrativa… mas nós cortamos para vinte anos e não há sinal desse cara. Aparentemente. Há uma mulher maravilhosamente estranha e misteriosa, que é parte da narrativa, uma parte muito importante — eu não quero dizer muito porque nós ainda vamos fazer isso um dia… eu espero… nós deveríamos falar com a Netflix.

O garotinho… que nasceu no começo da narrativa… se tornou essa mulher exótica. E é uma grande parte da narrativa nos tempos modernos de A Múmia. Mas esta é a nossa ingenuidade, Mick. Como nós pudemos pensar, em 1989, quando entregamos isso, que eles diriam ‘ah, ótimo!’. Eu acho que tive uma atitude um pouco ingênua diante dos engravatados.”

Talvez tenha sido. Foi somente em 2022 que Barker viu uma história sua com uma protagonista trans ser utilizada em um filme, com a versão de David Bruckner de Hellraiser: Renascido do Inferno. Apesar da vontade de Barker e Garris de realizarem juntos essa versão de A Múmia, com um remake tão recente em 2017, não sabemos quando isso será possível — mas se houver um viajante do tempo que queira voltar e impedir o remake de 2017, nós assinamos embaixo.

Stephen King, Mick Garris e Clive Barker no set do filme Sonâmbulos, de 1992. Nessa época, Garris e Barker ainda trabalhavam no roteiro de A Múmia. Eles esperavam que as gravações começassem em 1991, mas como a Universal sugeriu que trabalhassem novamente no roteiro, o prazo foi se estendendo.

Se você notou ali acima, que o tratamento de Barker continha o nome Rick, que era o herói da história, não se surpreenda. A Universal conhecia o rascunho do roteiro escrito por Garris e Barker. Eles sabiam do interesse de ambos. E tinham os rascunhos em mãos ao longo dos anos 1990. Apesar de A Múmia que chegou a nós por Sommers ser absolutamente diferente do que Garris e Barker planejaram, o nome de Rick permaneceu ali. 

Em 1999, Barker deu uma entrevista ao Cinefantastique e dizia o seguinte: “Mick Garris e eu fizemos o roteiro, mas era um pouco esquisito demais para a Universal. Um dos problemas é que, diferente dos vampiros ou do monstro de Frankenstein, a múmia é um dos últimos personagens a assustar você. Então nossa versão somente usou a múmia como ponto de partida para algo diferente, que era muito sinistro”.

Rick O’Connell (Brendan Fraser), o herói de A Múmia, ao lado de Eve (Rachel Weisz).

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Um sentimento doloroso de saudade de aquilo que nunca tivemos nos invade sempre que pensamos nessa versão de A Múmia que nunca aconteceu. E você, conhecia essa história? Comente com a Macabra no Twitter e Instagram.

Quer conhecer um pouco mais sobre Clive Barker? O livro Mundos Sombrios de Clive Barker, de Sarah e Phil Stokes, é um mergulho na mente ousada, original e única deste artista multitalentoso, e está disponível em pré-venda no Site Oficial da DarkSide Books.

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.