Bastante esperada, Lovecraft Country, nova série da HBO, estreou no dia 16 de agosto e arrebatou o coração dos espectadores. Desenvolvida por Misha Green (da série Underground), com produção do Jordan Peele (Corra! e Nós) e J.J. Abrams (Star Wars: O Despertar da Força, Além da Escuridão: Star Trek), a série é baseada no livro Território Lovecraft, de Matt Ruff. Com um time desses é impossível não ser interessante.
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Lovecraft Country se ambienta nos anos 1950, e somos apresentados a Atticus Black, um veterano retornando pra casa na parte de trás do ônibus reservado as “pessoas de cor”, lendo Uma Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs. Lembranças da guerra misturadas com elementos sci-fi demonstram que Atticus é um sonhador; mas quando o ônibus quebra e aparece uma opção para seguir viagem ele se torna um observador, já traçou a situação pelos olhares das pessoas em volta e percebe que aquela opção não se estendia a ele e a senhora negra que também viajava junto. O caminho deles seria a pé.
Ao chegar em casa Atticus descobre que o seu pai está desaparecido. Seguindo a última carta recebida, decide ir atrás dele — saindo da hospitalidade de um gueto de Chicago e adentrando num caminho muito perigoso — e tem como companheiros de viagem seu tio, o centrado George Freeman, e a espontânea Letitia Lewis, sua amiga de infância. Já existe todo um risco para um homem negro em trilhar pelas estradas hostis dos Estados Unidos, mas o que eles vão ao encontro é sobrenaturalmente muito mais perigoso.
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“O lugar fica em Lovecraft Country”, é a conclusão de Atticus lendo a carta de seu pai, que revela uma herança materna que lhe é direito no “Condado Ardham” — que, de primeira, Atticus lê erroneamente como Arkham. Essa é uma de muitas inspirações, elementos e conceitos de H.P. Lovecraft na trama. Segregador e um homem que acreditava na superioridade branca, o autor tem em suas obras menções a suas crenças, mas um poema totalmente voltado a essa temática é citado na série logo no inicio: “On the Creation of N*”, inclusive é usado como justificativa do pai de Atticus para ele esquecer a leitura de fantástica e se focar em uma “literatura de verdade”.
Em contraste ao livro de fantasia e livro de verdade, seu tio trabalha com turismo para negros. Ele pesquisa, escreve e edita junto com a esposa um livro chamado The Safe Negro Travel Guide que busca direcionar uma rota segura pelas violentas estradas dos Estados Unidos, indicando onde se hospedar, comer, abastecer o carro, quais rodovias pegar e quais cidades evitar a todo custo (guia que precisa ser atualizado constantemente para segurança daqueles que o seguem). O livro foi baseado no famoso Green Book, que existiu durante muitos anos no país e servia ao mesmo propósito ao da série.
Assim como na literatura, existe também o contraste terror cósmico vs terror real. Durante o dia vivenciamos com eles o racismo aberto, escancarado, e principalmente que é visto como uma realidade de direito por parte dos brancos. À noite, o terror pode se tornar lovecraftiano. Enquanto nas obras de Lovecraft existe um terror que não pode ser nominado com o risco de se tornar louco, a realidade tem o palpável terror racial, o risco de vida real, o pavor de que um virar numa esquina errada pode lhe custar a vida. Como exemplo, as denominadas Sundown Towns, cidades onde a presença de uma pessoa negra depois que o sol se põe é vista como crime passível de enforcamento no próprio local.
A série toma o seu tempo para apresentar os personagens e suas motivações, e com sutileza mostra o companheirismo entre eles, desde a maneira carinhosa que tio George se relaciona com a sua esposa e parceira profissional Hippolyta, até a maneira que Atticus acomoda sobre a cama uma edição de Conde de Montecristo do pai, do qual sempre teve divergências, assim como os conflitos familiares de Letitia que sente cada vez mais a pressão para aceitar suas responsabilidades e parar de sonhar. Notamos como a preparação é cuidadosa, desde checklists antes de pegar a estrada a toda uma pesquisa do que vão encontrar pela frente. No segundo ato a tensão começa para desembocar numa mudança de road-movie para terror — com direito a monstros e uma cabine na floresta (!).
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Com uma temática que não podia ser mais pertinente para o momento, com todos os conflitos raciais ocorrendo no mundo ocidental, Lovecraft Country apresenta as várias realidades paralelas dentro de um mesmo país, a jornada de Atticus, George e Letitia atrás de Montrose envolve toda a herança genética, cultural e social. É a necessidade de se entender quem é para, dessa maneira, conquistar o que lhe é direito. E Atticus, equilibrando toda uma cultura pulp/sci-fi/horror, mas ainda assim totalmente atento a realidade — talvez esteja melhor preparado pro está por vir, porque além de racistas essa road trip ainda vai encontrar cultos de homens brancos ricos, rituais sinistros e sacrifícios para seres interdimensionais.
Embora não essencial para entender a série, vale muito a pena conhecer o horror cósmico de H.P. Lovecraft, considerado um dos autores mais influentes do séc. XX e criador de uma obra que é totalmente enraizada na nossa cultura pop — a ponto de muitas vezes questionarmos a existência do Necronomicon. É uma oportunidade única de olharmos para suas histórias e poemas atentos a um racismo estrutural presente através de comparações e comentários depreciativos, uns mais sutis outros mais diretos, o que precisa ser combatido a todo momento.
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