O tijolo e a poeira

No conto inédito e exclusivo de Márcio Benjamin para a Macabra, um homem marcado por uma tragédia terrível busca vingança ao visitar o local em que tudo aconteceu.

Quem me leva os meus fantasmas?
— Pedro Abrunhosa —

 — A casa é essa. O senhor quer que lhe espere?

Sim. Aquela era a casa. 

— Precisa não, amigo. Obrigado.

— O senhor é quem sabe. 

Entreguei o maço de dinheiro por cima do vidro quase todo fechado já. O carro arrancou imediatamente, levantando uma poeira vermelha por cima do tempo.

O lugar era o mesmo. Ficaram algumas paredes, mas a casa andava diferente. Descascando a tinta amarelada mal pintada por cima da demão original, as janelas fechadas com tijolos davam uma sensação estranha, como se ela andasse era de costas.

O portão magrelo, mais novo, colocado de qualquer jeito, se empenava num convite. Empurrei com um pouco mais de força do que o necessário e num rangido, ele me deixou entrar.

Por dentro, o mato alto tomava de conta. As paredes em pedaços confundiam os quartos. Só ali senti o peso no ar. Só ali a danada se deixou reconhecer.

 — Everaldo, cadê Camila?

Perdido no meio de planilhas e tabelas, só percebeu, com a pergunta aperreada da esposa, o quanto estava tarde. E que aquele mal-estar e dor de cabeça eram fome.

— Veio da escola não ainda?

A esposa, de olhos arregalados e lábios trincados, não lhe respondeu o óbvio.

— Deve tá na casa de alguma amiga — disse, tentando acalmar a si mesmo, sem muito sucesso, porém.

A mulher virou as costas e saiu pra rua, com o marido atrás.

Toparam com a amiga, sozinha.

— Aninha, quedê Camila, tu viu?

A menina assustou-se.

— Vi não. Foi não hoje — respondeu confusa o que os pais deveriam saber.

— Num foi? — perguntou o pai.

Com os sopapos do coração angustiado dentro do peito, tomaram o rumo da escola.

O quintal foi o que mudou menos. As árvores grandes, peladas pela seca, resistiam por dentro daquele azul sem nuvens. Arrastando meu peso pra perto da mangueira e dei com o olhar mermo em cima do talho das letras. Alisei com os dedos os riscos já meio amarelados, bem quando um bem-te-vi cantou.

 — Pessoal — a microfonia guinchou por cima da fala da mãe, ela respirou um tempo, acostumando o ouvido e voltando em seguida. — Como tudo mundo sabe já a minha… — olhou pra o esposo, corrigindo-se —… a nossa filha, desapareceu. 

A última palavra se engasgou por dentro da garganta seca e a própria mulher assustou-se muito com seu ar definitivo. 

 — Todo mundo aqui conhece Camilinha e eu peço até pelo amor de Deus que vocês me ajudem a encontrar a bichinha. Ela saiu ontem pra ir pra escola, lá de casa mesmo. Tava com a farda, sapato vermelho de laço e a bolsa amarela do projeto nas costas. 

O padre levantou-se.

— Obrigado a todos por estarem aqui hoje nesse ato de fé cristã. Tenho certeza de que, com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo, vamos encontrar Camila. Agora peço que todos deem as mãos e rezem a oração que Nosso Pai nos ensinou.

— Ora… oração…— murmurou a esposa.

— Eles tão fazendo o que dá, mulher, tenha sua paciência.

— A gente deveria era tá na rua, perguntando, na polícia!

— E num fizemos não isso já? Pois então. Tá quem pode na rua, Paranhos tá avisado.

— Bosta de delegacia que nem carro tem…

O marido se sentia mal em dar desculpas à mulher, mas ali um tinha que dar esperança, que ter força.

— Camila vai voltar, mulher. 

A esposa baixou a cabeça, entre lágrimas discretas.

— A gente vai encontrar nossa menina – disse ele, com uma tímida mão em seu ombro.

A lembrança soprou-se por dentro da minha cabeça. Limpei uma quina de calçada e me sentei em cima. Lá no cantinho do quintal, uma gata dava de mamar a seus filhotes. 

Me levantei, e com cuidado cheguei perto. Um deles não se mexia. Coberto de areia e formigas, ainda de olhos fechados. Pra sempre de olhos fechados.

Com o olhar cabisbaixo, visivelmente abalado, Paranhos torcia as mãos como se pudesse arrancá-las.

— Acharam Camila.

Everaldo ali entendeu. Aquela conversa não era coisa boa. Não se acha ninguém vivo.

— Me leve. Quero ver minha filha.

A lembrança veio em estalos, imagens perdidas como uma chamada de televisão, sem som, sem cor; só com aquele aperto fundo no peito. Silencioso tal qual o fundo de um açude.

A igreja novamente, o salão paroquial, a mesa pequena, o lençol branco com as iniciais do hospital, manchado de um discreto vermelho.

— Precisa fazer isso não, Everaldo. Não tem que reconhecer não. Everaldo!

Everaldo empurrou o delegado e seguiu pra perto do corpo lentamente, como quem anda em um mangue.

Assim que puxou o lençol, tudo ficou escuro.

Sem ter o que fazer, enterrei o gatinho e fiquei olhando os demais. Ainda muito pequenos, se atropelavam em um mar de tetas, procurando pelo leite, farto.

Desconfiada, a mãe não tirava os olhos de cima de mim.

Achei melhor deixar a família em paz.  Me levantei com dificuldade, esticando as canelas velhas, que estalaram.

Até que pelo rabo do olho vi uma sombra grande agachada em cima da casa.

— Não! Não! 

Everaldo não dizia nada, apenas segurava a mulher pelos braços, abraçando-a contra o próprio peito.

Delicadamente, deixou-a aos cuidados de uma comadre e seguiu pra delegacia.

Qualquer espécie de sentimento ali se apagou, como quem assopra a chama de uma lamparina.

Foi uma luta atravessar a multidão que gritava ao redor da delegacia, pedindo justiça, cega, urgente.

A sua chegada abriu passagem por meio do povo, em meio a rápidas carícias de apoio, olhares curiosos de pena e muitos punhos cerrados.

 — O condenado tá lá dentro. A história tava estranha demais, mal contada. Foi só apertar um pouco. O povo lá fora já já se cansa. Mas vontade era abrir a porta e deixar entrar, juro por Deus.

Sentando em frente ao delegado, Everaldo não tinha o que dizer.

— Eu sinto muito, meu amigo. Eu sinto demais. Mas ele vai pagar, ah, se vai… Um padre, um padre!

Lentamente, fui me aproximando da entrada novamente. Atenta, a gata ainda me seguia com o olhar.

— Certa tá você, bichana, que soube cuidar dos seus. A minha foi comida pela terra, como esse seu que não vingou.

O telhado da casa estava vazio, não havia ninguém em cima.

Eu tô ficando é doido. Finalmente. Graças a Deus, meu Deus.

 — Te chamei porque a Diocese mandou buscar esse condenado. Diz que o advogado conseguiu um habeas corpus. Filho da puta.

Lá fora, a noite morta apenas ecoava a cigarra adivinhando chuva.

— A gente vai resolver, Everaldo. Eu e você. Depois dou meu jeito. Camilinha merece.

Decidido, o delegado seguiu pra dentro das celas, estranhando o silêncio. Gritou furioso quando viu a réstia da lua refletindo no corpo que balançava, pendurado nas grades.

Dentro da casa, já não havia tanto sol. O resto da tarde se esparramava por dentro da grama alta que escondia lagartixas. Nas paredes, casas de cupins tomavam conta, trazendo algum tipo de vida.

Eu não me surpreendi com o avejão do homem encostado no canto da parede, de costas, apoiado na testa. Também não me surpreendeu a batina.

— Olhe pra mim.

O condenado não se mexeu.

— Olhe pra mim, seu féla da puta!

Devagarinho, se virou. Os olhos pretos, fundos, a marca no pescoço denunciando a covardia.

— Você fugiu antes, miserável. Mas eu vim aqui pra mó de resolver. A minha vida acabou, você acabou com a minha vida quando a minha menina sumiu. Minha mulher me deixou, eu sumi daqui, porque via ela em tudo quanto é lugar. Diz que minha mulher se casou, arrumou outro, teve outros filhos. Mas eu não. Eu não porque não aguentava. Eu morri junto com a minha menina, seu féla da puta. Mas hoje vim aqui perdoar.

Juro que vi um riso se formar no rosto daquele cão.

— Vim aqui me perdoar, de uma vez por todas. E seguir minha vida, ainda que eu não saiba pra onde.

O riso murchou na boca do diabo e ele se encolheu pra sombra.

— Eu tô perdoado, tô sim, mas você num tá não. Nunca. Você, e isso eu peço a Deus, você há de ficar pra sempre aqui, nessa casa que um dia foi minha, eternamente preso aqui lembrando de tudo que fez. Isso eu peço a Deus, porque acho que tenho direito.

Antes que ele dissesse alguma coisa, virei as costas e atravessei o portão magro.

Vendo o sol ir embora, coloquei o chapéu na cabeça e segui em direção à estrada, com o coração se esquentando de leve, como uma brasa assoprada na fogueira.

Depois de tantos anos, consegui sorrir, sentindo como se fosse assim, um estalo dando corda dentro do peito.

Respirei fundo e peguei a estrada de volta pra casa. Sozinho. 

Mas quem me viu, contou que andava do meu lado uma menina, de farda de escola e bolsa de projeto. 

Igualmente livre, como só menino sabe ser. 

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Márcio Benjamin é autor de romances e livros de contos de terror folclóricos (Maldito Sertão, Fome e Agouro), dramaturgo (Hippie-Drive, Flores de Plástico e Ultraje), roteirista de webséries e curtas-metragens, e agora trabalha no roteiro de seu primeiro longa-metragem, Quebrando o Gelo. Em 2021, o autor lançará um novo livro pela DarkSide Books.