The Dark Man e as conexões do Homem de Preto com a obra de Stephen King

Cesar Bravo fala sobre The Dark Man, a prosa de Stephen King que conecta os leitores do rei do horror à origem dos pesadelos.

Por Cesar Bravo

The Dark Man: O Homem que Habita a Escuridão é um poema direto e afiado — quase um prólogo, poderíamos dizer — ilustrado magistralmente por Glenn Chadbourne. Mas o que seríamos capazes de prever a partir dele? Bem, como fui contemplado em traduzir essa obra importantíssima do universo de Stephen King, sinto que tenho algo a dizer.

Assim que corremos os olhos no livro original, logo na primeira imagem, nos sentimos catapultados para a paisagem pós-apocalíptica de A Dança da Morte. É um pouco complicado tentar expressar uma percepção, mas foi exatamente isso o que senti. Havia o desolamento, a secura, o pós-desastre, e havia ele, essa sombra, o grande opositor que viria a se chamar Randall Flag.

Na segunda página recebemos um convite — que não poderia ser mais desafiador, uma vez que parte de Stephen King.

Então vamos lá, você e eu…

The Dark Man: O Homem que Habita a Escuridão
The Dark Man: O Homem que Habita a Escuridão, edição da DarkSide Books

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Logo nas primeiras páginas, Stephen King nos arrasta por um cenário que ele conhece de perto. As estradas abandonadas, os trilhos, os longos trechos do Maine onde somente o isolamento e o abandono parecem se interessar pelos vivos. Com as botas surradas de um viajante, caminhamos por essas paisagens desoladas e cinzentas, onde a fome e o pesar são as únicas certezas possíveis.

Pode parecer ficção, e de fato se tornaria ficção, mas a verdade é que essas terras devastadas são o universo original da infância de Stephen King. Quando garoto, ele perambulou por essas mesmas ferrovias abandonadas graças à demanda da guerra, ferrovias essas que passavam a acumular vagabundos e aproveitadores de todos os tipos. King nos conta mais desse universo em seu conto “O Corpo” (novela integrante do livro Quatro Estações, que viria a ser adaptado como o filme Conta Comigo) e em “Às Vezes Eles Voltam”, também belamente adaptado. Com os meninos desses contos curtos, conhecemos a paisagem exata que King inseriu primariamente em seu poema The Dark Man. Os trilhos, o abandono, a presença dos vagabundos queimando sterno para se aquecer.

Seguindo a estrada com o Homem de Preto, atravessamos plantações e milharais sombrios (como o que existe em Colheita Maldita), e visitamos casas arrogantes onde se decide o destino da humanidade a portas fechadas. Claramente, veríamos o mesmo em The Dead Zone, onde Greg Stilson planeja bombardear o mundo para provar sua visão psicótica do poder. Aliás, a visitação a ameaças nucleares seria uma constante na obra de King, de A Zona Morta à Torre Negra.

The Dark Man: O Homem que Habita a Escuridão

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Outro ponto bastante marcante no livro é a ambiguidade do Homem de Preto, que oscila entre o simples observador e o executor da maldade. Veríamos algo semelhante em A Metade Sombria, onde um escritor é confrontado e atacado por seu alter ego personificado, algo que se repete em A Janela Secreta. Indo mais além, podemos citar Annie Wilkes, que transita de fã número um a uma maníaca assassina.

King vai além em seguida, e flerta com a escuridão mística e exotérica que viria a permear boa parte de sua obra. Aqui podemos incluir sobretudo os contos mais curtos, onde King se permite brincar com demônios, bruxaria, espelhos enfeitiçados e magia das trevas. Também parece justo citar Cemitério Maldito, Salem’s Lot e Outsider.

Ao longo do livro, o Homem de Preto de King visita uma casa em ruínas, e nossa mente faz a conexão imediata com O Talismã e A Casa Negra. Mas também existe Rose Madder e Saco de Ossos nesse mesmo contexto. Quando a casa consumida se confessa com a lua em The Dark Man, novamente a imagem de uma hecatombe nuclear se projeta em nossa retina.

Esse é o universo-base de Stephen King, são seus demônios particulares que ainda se ancoram e impelem sua genialidade.

Existe um documentário muito interessante onde King fala sobre sua infância, e sobre como ele costumava colecionar recortes de jornais com notícias de assassinos em série e crimes chocantes. Nesse mesmo documentário (A Shining in the Dark), King afirma que só queria descobrir o que aqueles assassinos tinham de diferente, para poder identificá-los e prevenir contra eles. Esse lado escurecido da humanidade é outra de suas constantes.

Outro ponto é o da própria natureza humana, e da linha tênue que nos separa da bestialidade. Nesse contexto, The Dark Man nos monstra uma garota sendo atacada em um descampado. Na obra posterior de King podemos citar Dolores Claiborne (Eclipse Total), Carrie, Saco de Ossos, O Iluminado, Jogo Perigoso, Big Driver, A Dança da Morte e Sob a Redoma, entre outros títulos no qual as mulheres são as grandes vítimas do criminoso apetite masculino.

The Dark Man: O Homem que Habita a Escuridão

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Steve também se apropria dos homens e mulheres que são ignorados pela sociedade, andarilhos, caroneiros e prostitutas, as grandes testemunhas dos horrores noturnos. Pensamos em Sede de Vingança, no padre Callahan de Salem’s Lot, na população não nomeada de Chester’s Mill (Sob a Redoma) e na cidade alienígena (Haven, se não me engano) dos Tommyknockers; e em inúmeros personagens transitórios que só parecem existir para testemunhar um crime hediondo.

Nas primeiras páginas, King também cita, em uma linha, as “Psicoesferas do Batismo”, uma crítica suave às religiões, que se tornaria bem mais pungente em livros como Carrie, A Hora do Lobisomem, O Nevoeiro e Revival. Criticar religiões e pregadores, aliás, é um dos passatempos prediletos do rei do horror.

Em nuances não tão óbvias, King nos confronta com a velhice, que futuramente estaria em obras como Insônia, Jovem Outra Vez, Mr. Mercedes, À Espera de um Milagre e alguns contos. E sugere, graças “às portas fechadas”, conspirações governamentais como escrito em A Incendiária e Olhos de Gato.

Finalmente, King aponta o perigo de continuarmos agindo como sempre agimos, no risco de insistirmos em nossa falta de evolução que nos levará à nossa própria extinção. Com o dedo em riste, o homem de preto nos diz: se vocês continuarem por esse caminho, eu vou pegar todos vocês…

Em um olhar mais atento, percebemos que The Dark Man pode representar a nós mesmos, sendo nossa própria metade obscurecida, a voz que não usamos, nossa essência da maldade. Nesse ínterim, King também mantém seu grande opositor por perto, trajando-o como Raldall Flag, Pennywise e Walter das Sombras, mantendo-o sob a estrita vigilância de suas obras.

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Autor e tradutor, Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo, e há mais de uma década dá voz à relação visceral com a literatura. É autor de romances, contos, enredos, roteiros e blogs. Sua escrita afiada ilumina os becos mais escuros da psique humana. Pela DarkSide® Book, Cesar Bravo já publicou Ultra Carnem e VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue.