Silêncio Hereditário

Tentar fazer parte de um grupo pode causar muitas dores, mas se integrar a um, de fato, pode ser muito pior

Lázaro Corcel acendeu um cigarro e manteve o retrato na mão direita. Tão especial, tão cheia de vida; sim, Yasmin era boa demais para ele. Provavelmente, boa demais para qualquer um. Como seria revê-la? Mais um trago no cigarro e um suspiro, o retrato repousando à mesa.

Talvez não tivesse sobrado muito do que existia no papel fotográfico. Dez anos podem fazer um bom estrago em uma pessoa. Deus sabe que no caso dele foram muitos. Uma bala alojada nas costas, dois medicamentos para a hipertensão, rugas e cabelos brancos que chegaram cedo demais.

— Chefe? Vai demorar muito aí?

Era o garoto. Dezenove anos. “Na flor da idade”, como dizem.

— Já estou saindo.

O garoto era impetuoso. Um traço que o faria um bom detetive caso persistisse naquela burrice.

— É a sua filha? — perguntou, já ao lado da mesa.

— Não, cara de espinha. É minha namorada. Era minha namorada — Corcel se corrigiu em tempo e se levantou. Apanhou a jaqueta que imitava couro e jogou um molho de chaves ao garoto. — Vou ficar fora uns dias. Anota os recados, cuida de tudo até eu voltar.

— Vai atrás da garota?

*

Quase seis horas de estrada. Era improvável, mas talvez valesse a pena.

Quem entrou em contato foi o pai de Yasmin, Demócrito Custódio, conhecido como O Gaúcho, por conta da churrascaria que trazia sustento à família nos anos 1990. Demócrito não morava mais em São Paulo nem tinha uma churrascaria, ele criava patos em Minas Gerais há dois anos. Pai e filha não se falavam, então, o fato d’o velho entrar em contato com um ex-namorado — que por acaso ganhava a vida como detetive — e pedir ajuda devia significar um problema bem sério.

De zero a dez, o hotel escolhido por Corcel receberia ¼ de estrela. Não era uma novidade tão grande assim, além disso, aquela porcaria de lugar era o único dormitório que ficava a menos de cinco quilômetros da casa de Yasmin Custódio.

*

No segundo dia, uma caminhada pelo bairro, oportunamente, uma parada para um café na padaria Ciranda do Sol, que ficava em frente à casa de Yasmin. Foram precisos dois cafés, um salgado requentado e uma Coca-Cola Ks, até que a porta da casa cinza se abrisse. Era ela. Em vez do mundo ordinariamente comum que beirava seus pés, Yasmin olhava para cima, como quem tenta se aconselhar com o sol da manhã. Ficou assim parada, os olhos no nada, e continuou naquela mesma posição por quase dez minutos. Então entrou e fechou a porta.

— Conhece a moça? — Corcel perguntou ao rapaz que servia os cafés e olhava para a casa cinza.

— Todo mundo conhece a Yasmin.

— Ela é estranha — Corcel comentou, sabendo que seria o suficiente. Gostemos ou não, padarias, velórios e pequenos comércios ainda vivem das fofocas dos clientes.

— Ela não era assim. Ficou doida faz um tempo — o rapaz explicou. — Tem um pessoal que vem cuidar dela, um monte de velhas que não têm mais nada pra fazer da vida.

— Elas têm muito o que fazer — a mulher que ocupava o caixa explicou. — Elas fazem parte de um ONG aqui do bairro, A Vizinhança Solidária. A mocinha ali da frente é um caso sério de depressão. Ela era uma das meninas mais animadas do Terra Nova, ficou desse jeito depois de desmanchar o noivado.

— Quem era o cara?

— Se mudou para São Paulo — a mulher explicou. — Ninguém importante por aqui, mas devia ser importante para ela.

*

Na segunda noite, uma garrafa térmica abastecida com café e um pote de comprimidos de cafeína. Claro que aquilo alteraria a pressão sanguínea, mas a cafeína ainda era mais segura que os rebites que vendiam por aí.

Nada de Yasmin no portão, apenas o vai e vem morno dos subúrbios. O rádio do carro tocando algo meloso de Nazareth, o clima incandescente do Noroeste Paulista parecendo ainda mais quente dentro do Sandero. Corcel sentiu os olhos pesarem às onze, e só acordou do cochilo involuntário perto das duas da manhã. Com o clima mais suportável promovido por uma garoa fina, havia um pouco de vapor embaçando os vidros. Ele os esfregou, e logo notou algum movimento do outro lado da rua.

— Quem são esses caras? — disse a si mesmo.

Eram três pessoas. Todos vestiam capas de plástico quase transparentes sobre roupas comuns e carregavam o que pareceram aspiradores de pó à Corcel. Havia um furgão com um logotipo de dois machados verdes cruzados, estampados sobre a palavra VERDEVIDA. Os homens de capa estavam guardando os tais aparelhos na parte de trás do veículo. Corcel desceu do carro, os homens de capa começaram a agir mais depressa. Atravessou a rua; os três já fechando a porta do furgão.

— Ei! — ele ainda gritou.

Com o arranque do furgão, desistiu de acordar a vizinhança e cruzou a porta da casa vigiada, lamentando terrivelmente ter perdido seu porte de arma. Longa história…

O cheiro não era ruim, mas era denso, quase vegetal, tinha o odor de matéria orgânica, de uma floresta se decompondo. Inerte a tudo aquilo, Yasmin continuava sentada, os olhos abertos cravados ao nada da parede branca, a boca um pouco torta, inclinada para baixo.

— Yasmin? Sou eu, Yasmin. O Corcel.

Ela não moveu um músculo consciente. Nem mesmo alterou a respiração. Corcel se abaixou um pouco, deixou os olhos na mesma altura dos da garota. Eles não pareciam registrar sua presença. No chão, a poeira começava a se assentar e, inacreditavelmente, a desaparecer.

— O que fizeram com você? — ele perguntou à mulher e estalou os dedos. Ela estava mortalmente pálida; a pele fina deixando pequenos rios azulados se transparecerem através do rosto. Nos pés descalços, minúsculas feridas tomando os dedos. Nas mãos, pústulas parecidas já chegavam aos punhos.

— É um tratamento — alguém disse às costas de Corcel.

Ele se levantou depressa e se preparou para o combate, mas tudo o que encontrou foi uma mulher idosa, vestida como uma camisola comprida, azulada e gasta.

— Quem é a senhora?

— Eu? Quem é você, meu filho?! E o que está fazendo na casa de uma mocinha doente?

— Alguém chegou e jogou um monte de pó branco no chão. Não sei se é seguro respirarmos isso.

— É seguro, sim. Na verdade, foi a mocinha aqui que pagou por esse… pó branco, como o senhor disse. O pozinho é um medicamento natural contra depressão. Pelo que sei ainda está em fase experimental, mas tem inclusive licença especial para ser distribuído. É uma medicação à base de esporos de plantas. A empresa é de um rapaz daqui, José Mourinho. — Ela parou por um instante e afastou uma mecha de cabelos que ameaçava entrar nos olhos de Yasmin. — Não vai perguntar como eu sei de tudo isso?

— Vizinhança Solidária?

— Certo, certo, parece que alguém já fez o trabalho de casa. Agora posso saber quem é o senhor antes de chamarmos a polícia?

*

A polícia acabou sendo descartada quando Corcel explicou quem era e o que estava fazendo ali. Depois de um telefonema ao pai de Yasmin, a mulher idosa também se convenceu, mas disse que só iria embora quando Corcel deixasse a mocinha em paz. Ele o fez e no dia seguinte, às oito da manhã, estava na mesma padaria.

— Parece que a nossa amiga saiu da cama mais cedo — Corcel incentivou o rapaz a fofocar mais um pouco. O garoto do café se esticou e conferiu Yasmin, ela estava novamente com os braços abertos ao sol.

— Ela faz isso três vezes pela manhã. Depois, às três da tarde, e depois lá pelas cinco. Parece uma planta — riu.

— Não dá pra acreditar. Eu a conhecia, ela era minha namorada.

— A dona Shirley contou a verdade ontem, ela tá desse jeito porque tomou um chute do outro cara — o rapaz chegou mais perto. — Eles brigavam demais e todo mundo tinha pena dela. Um amigo meu disse que ele batia nela e tudo. Mas quando o valentão foi embora ela começou a ficar triste. Só chorava. Às vezes, ela vinha aqui e pedia alguma coisa pra comer, mas quase não comia. Aí alguém falou pra ela do tratamento do José Mourinho.

— O cara do pozinho branco?

— Esse aí. Dá uma procurada depois, o nome da firma é Verdevida. Acho que tem um cartão deles aqui. — O rapaz foi até o caixa e voltou com um deles.

— Valeu. Talvez eu ainda consiga ajudá-la.

*

Naquela mesma noite, Corcel fez uma visita surpresa à Verdevida.

Havia três furgões da empresa estacionados além dos alambrados metálicos. Dois saíram carregando homens de capa transparente, um ficou onde estava. Os furgões voltaram quase duas horas depois. Então, sete homens saíram pelos portões e as luzes se apagaram. Corcel esperou o retorno, ou alguma movimentação, mas tudo parecia morto. Invasão de propriedade ainda era crime, mas se ele estivesse certo quanto àquela gente, ninguém que o notasse pulando as cercas pediria a ajuda da polícia.

Após uma grande estufa forrada com material parecido com a capa dos funcionários, dois tonéis azuis redondos não muito altos, mas com quase dois metros de diâmetro. Ambos estavam lacrados, e ainda assim o cheiro forte enjoava, era o mesmo odor que Corcel sentiu na casa de Yasmin. À direita dos tonéis, um cômodo sem janelas, fechado com cadeado — tudo muito rústico, como deve ser o consultório da maioria dos charlatães. Tratamento experimental… claro que sim.

Arrombar foi brincadeira de criança. Quanto ao computador, a porcaria sequer tinha uma senha. Também não havia nada ali, apenas o nome de clientes em dezenas de planilhas feitas em Excel. Corcel já desistia de encontrar as evidências que precisava quando sua lanterna encontrou algo mais interessante que um punhado de planilhas. Havia um antigo porta-arquivos às suas costas, do tipo fichário.

Miriam Elesbão, Sandra Milgram, Natália Piedade, Nora Albuquerque.

— Yasmin Custódio.

Nome, tipagem sanguínea, situação civil, exames ginecológicos. Então, gráficos variados, de cores variadas, armados com legendas que não faziam sentido algum aos olhos de um leigo. Mas havia aquelas duas palavras mágicas: Valor Energético e Fatalidade. Era uma forte sugestão de algo ruim, ruim demais para se deixar passar.

— Por que não solta meus documentos e se vira bem devagar? — o homem obscurecido perguntou com um revólver em riste.

*

— José Mourinho? — Corcel arriscou um palpite. Podia ser um dos lacaios, mas pelo que o detetive sabia dos lacaios, eles não costumam fazer hora-extra em seus trabalhos sujos.

— Em carne e osso. Agora vai me dizer por que invadiu minha empresa? O senhor não parece nosso tipo de cliente.

— Não, eu não sou uma garota deprimida que levou o pé na bunda.

— Aposto que não. O senhor provavelmente é um dos pés.

— Eu sei o que está acontecendo aqui. Você está matando todas aquelas moças, está torturando e matando cada uma delas com suas drogas perfeitamente seguras.

— Que bobagem é essa que está dizendo?

— Eu vi o pó que vocês as fazem respirar. Vi os dedos corroídos, nas mãos e nos pés, eu nem quero imaginar como elas estão por dentro. O que você ganha com isso? Quem está pagando por essa obscenidade? A Bayer? Monsanto? A Pfizer?

— Elas estão pagando, ora essa! As garotas! Quem mais nos pagaria? Elas só querem se livrar da dor, não entende? Querem que sua existência signifique algo melhor que o sofrimento e o longo arrastar dos anos. Cuidamos das pessoas que não confiam mais em sua espécie, senhor, é só isso o que fazemos.

— Elas estão sendo… digeridas. É isso o que parece. É o que está escrito nesses papeis.

— Tem certeza? O senhor tem absoluta certeza das suas acusações?

— O que mais pode ser tudo isso? Valor energético? E fatalidade tem algum outro significado que eu não conheça?

— Fatalidade é algo raro e incontrolável. Quanto à sua amiga e muitas outras moças, elas estão felizes enquanto repovoam esse mundo esquecido. É isso o que fazem. Nossa espécie não é muito diferente dos seus bebês. Assim como os fetos humanos, nossas sementes também precisam de substrato e de um lugar seguro para se desenvolverem. Toda fêmea desse planeta perece durante a gestação, mesmo um ignorante como o senhor deve saber disso.

— Gestação?

— Está na mente delas, em um lugar quieto, calmo e protegido. Quando chegar o momento, todas as sementes germinarão. Enquanto isso, nossas mamães viverão felizes e plenas, em perfeita harmonia com a natureza; não a natureza mesquinha desse planeta hostil, mas a natureza sábia e eterna que reina na vastidão do cosmos.

— Não, não é isso que vai acontecer. Mesmo que me matar, outros virão em meu lugar, não se pode esconder a verdade para sempre!

— A verdade, oh sim, a verdade — José Mourinho guardou o revólver.

— O que está fazendo? O que é você? — Corcel perguntou quando notou os primeiros pontos de fluorescência verde surgindo na pele do homem.

— Sou um dos filhos que se tornou uma das mães — começou a explicar.

“No pó branco, desapareci. Para quem esperava me reencontrar, morri, e continuei naquele lugar, viva, existindo de verdade, esquecida por todos e conectada a tudo. Entendi a plenitude da existência. Aguardei algo renascer e virei o adubo de cada nova possibilidade. Na segunda semana da primavera me tornei eterna. A base de uma árvore frutífera me abraçou e deixei ela seguir o seu caminho. Naquela tarde, abaixo da terra, entendi que estava viva.”

— Não! Você é um louco! — Corcel avançou em direção a ele. Ou pelo menos tentou. — O que fez comigo? — perguntou e olhou para os dedos dormentes, que se recusavam a obedecê-lo, como todo o resto do corpo.

— Tenha calma. Vai se sentir melhor em breve.

— Não, eu não quero, eu não aceito!

— É tarde demais para isso, detetive. Claro que sabemos quem você é. Você respirou nossas sementes, esqueceu? Sabemos o que você pensa, sabemos tudo o que o seu cérebro minúsculo orienta seus músculos a fazerem. Eu sei, e todos nós, pais, mães e filhos, sabemos. Você está se tornando um de nós, não resista.

— N…

Corcel relaxou os músculos e notou milhões de estrelas esverdeadas iluminando a escuridão da noite. Tudo era tão bonito, tão pleno e puro e cheio de vida. Tudo estava conectado e a conexão era a própria existência infinita de todas as coisas. De certa forma, ele estava em Yasmin e ela também estava nele. Havia centenas de consciências diluídas e imersas entre si, dividindo dores e sucessos, compartilhando uma existência perfeitamente equilibrada.

— Vamos, detetive. Você precisa descansar um pouco. Logo seus tecidos se metabolizarão em algo melhor.

— É… acho que…

— … Sim.

— Nós vamos cuidar de você, nós sempre cuidamos uns dos outros. Parece bom, não é mesmo? Não parece bem melhor que o que conheceu até aqui?

De algum lugar ermo a consciência ainda humana de Corcel se obrigou a concordar. Era bom se sentir aceito e amado, era muito bom ter um futuro promissor e infinito pela frente. Era bom pertencer a algo.

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Autor e tradutor, Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo, e há mais de uma década dá voz à relação visceral com a literatura. É autor de romances, contos, enredos, roteiros e blogs. Sua escrita afiada ilumina os becos mais escuros da psique humana. Pela DarkSide® Book, Cesar Bravo já publicou Ultra Carnem, VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue. DVD: Devoção Verdadeira a D., e organizou a Antologia Dark.