David Cronenberg: mestre do horror corporal

Artista de diversos talentos, Cronenberg é mestre em usar o body horror e a tecnologia para contar suas histórias. Mergulhe na mente macabra do cineasta.

Diretor, roteirista e produtor. Uma das mentes mais macabras por trás de filmes icônicos que tomaram conta das salas de cinema entre os anos 1970 e 1980, David Cronenberg já não dirige filmes há alguns anos, mas permanece na mente e no coração dos fãs e de outros realizadores da indústria do terror.

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Além do horror corporal, os temas de doenças, psicologia e até mesmo a religião são abordados com frequência em suas produções. Para o cineasta, observar as pessoas é ver “esse turbilhão de caos orgânico, químico e eletrônico; volatilidade e instabilidade cintilante; e a capacidade de mudar e transformar e transmutar”. 

Influências e início de carreira

Durante sua infância e juventude, Cronenberg foi atraído ao mundo da ficção científica através de revistas com obras de autores importantes da época, como Ray Bradbury e Isaac Asimov. As revistas  The Magazine of Fantasy & Science Fiction, Galaxy, e Astounding, além de quadrinhos de super-heróis, Tarzan e os famosos quadrinhos de horror da EC Comics, foram grandes responsáveis por mantê-lo ocupado e transportá-lo a mundos aterrorizantes e surpreendentes. Mas uma das grandes influências de seu trabalho só seria descoberta anos mais tarde: Philip K. Dick, autor de Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas, O Homem do Castelo Alto, além de tantos outros contos e livros que foram adaptados para o cinema e TV.

Em entrevistas posteriores, e quando já havia iniciado seus trabalhos como diretor, Cronenberg também citou Vladimir Nabokov e William S. Burroughs como influência. Nos anos 1990, Cronenberg adaptou uma das obras mais controversas de Burroughs, considerada inadaptável, Mistérios e Paixões (1991, com o título original de Naked Lunch, mesmo título do livro), que falaremos mais adiante.

Os filmes também influenciaram grande parte do trabalho de Cronenberg, principalmente os filmes de horror, ficção científica e alguns filmes surrealistas. Dentre suas influências estão Um Cão Andaluz (1929), O Vampiro (1932), Guerra dos Mundos (1953), O Monstro da Lagoa Negra (1954), e, de forma menos óbvia, filmes da Disney como Dumbo (1941) e Bambi (1942).

O Vampiro, 1932

Graças a um grande fascínio por botânica e lepidopterologia — um ramo da entomologia voltado às mariposas e borboletas —, Cronenberg entrou em um programa de Ciências na  University of Toronto, mas logo se transferiu para um programa de Literatura e Língua Inglesa. Cronenberg escrevia desde pequeno, principalmente ficção científica, influenciado pelas obras já citadas, mas quando teve contato com o filme Winter Kept Us Warm (1965), filme independente de seu colega de turma David Secter, acabou se interessando mais pelo cinema.

Depois de dois curtas-metragens, Transfer (1966) e From the Drain (1967), dirigiu dois médias, Stereo (1969) e Crimes of the Future (1970), e firmou uma parceria com  Ivan Reitman, diretor e produtor canadense, dono da produtora The Montecito Picture Company. No início dos anos 1970, Cronenberg dirigiu alguns filmes para TV, como o documentário Letter from Michelangelo (1971) e Winter Garden (1972), mas foi a partir de 1975 que Cronenberg atingiu resultados impactantes com seu trabalho.

Anos 1970: Calafrios e Os Filhos do Medo

Se a ficção científica já estava presente desde os primeiros trabalhos de Cronenberg, ela permanece um de seus principais elementos e avança em direção ao horror corporal nessas primeiras grandes obras de sua carreira.

Calafrios, 1975

Em Calafrios (1975), um cientista assassina uma mulher e, logo em seguida, comete suicídio. Enquanto ocorrem as investigações sobre o caso, percebe-se que o cientista trabalhava com um estranho parasita geneticamente modificado, que infectou diversos residentes do prédio em que ele morava. O parasita é capaz de tornar os infectados em loucos por sexo, e o menor contato gera contaminação a outras pessoas. 

Dirigido e escrito por Cronenberg, Calafrios foi o filme mais lucrativo produzido no Canadá no ano de 1975, mas também gerou debates sobre seu valor enquanto obra para a sociedade, devido a seu tema violento e sexual. Foi exibido nos Estados Unidos, de início, com o título alternativo de They Came From Within (Eles vieram de dentro). Mesmo sendo um filme bastante lucrativo, Calafrios recebeu um número razoável de críticas negativas em seu lançamento. 

Enraivecida na Fúria do Sexo. 1977

Dois anos depois, Enraivecida na Fúria do Sexo é lançado. O filme conta a história de uma jovem que, após sofrer um acidente de moto com seu namorado, é levada até uma clínica, onde um cirurgião plástico testa um novo procedimento em seu corpo. Após um período em coma, Rose (Marilyn Chambers) acorda com uma sede de sangue terrível.

Novamente o transplante e as modificações nos corpos entram em cena no trabalho de Cronenberg. Enraivecida na Fúria do Sexo se saiu melhor que Calafrios em relação às críticas. Inicialmente o diretor queria Sissy Spacek como Rose, mas Ivan Reitman sugeriu o nome de Chambers, que era então atriz pornô. Algumas fontes afirmam que Reitman sugeriu Chambers por seu “sex appeal”, outras porque a atriz procurava oportunidades no cinema mainstream. Seja como for, Cronenberg ficou impressionado com o trabalho da atriz.

Em 1979 é lançado o filme Escuderia do Poder, sobre um piloto de corridas que, depois de perder seu lugar para seu rival, decide roubar seu carro e correr de forma independente. Um dos filmes menos lembrados de Cronenberg, nunca chegou a ter um lançamento apropriado nos Estados Unidos mas fez certo sucesso no Canadá.

Os Filhos do Medo, 1979

É em 1979 também que o filme Os Filhos do Medo é lançado. Frank Carveth (Art Hindle) começa a ficar preocupado com as escolhas de tratamento do psicólogo de sua ex-esposa, Nola (Samantha Eggar),  quando sua filha aparece com alguns machucados. A estranha tática do médico consiste em fazer com que seus pacientes com distúrbios deixem que essas ansiedades se manifestem através de modificações em seus corpos. O desenrolar da história é perturbador e, como sempre, Cronenberg faz um excelente trabalho com o horror corporal.

Cronenberg escreveu e dirigiu o filme após seu próprio divórcio conturbado e afirma que ambos os personagens, de esposa e marido, têm características dele e de sua ex-esposa. O filme recebeu críticas mistas em seu lançamento, mas assim como a maioria dos filmes de Cronenberg, acabou se tornando um clássico ao longo dos anos seguintes.

Anos 1980: de Scanners a Gêmeos – Mórbida Semelhança

Podemos dizer que os anos 1980 foram os anos de maior sucesso para Cronenberg e suas ideias, que mistura o horror, as modificações corporais — internas ou externas —, e a tecnologia. 

Scanners: Sua Mente Pode Destruir, 1981

Logo no início da década, em 1981, Scanners: Sua Mente Pode Destruir foi lançado. Há um movimento clandestino que une pessoas com fortes poderes mentais, capazes de causar dor e aflição em suas vítimas, chamados de scanners. Um homem consegue encontrar um scanner capaz de perseguir outros, e caçá-los, e até mesmo acabar com eles. 

É com Scanners que Cronenberg chama a atenção do público mainstream. Apesar do sucesso razoável desde então, o diretor ainda era relegado ao status de cult. Scanners impressionou principalmente por seus efeitos especiais e práticos, como a cena em que um dos scanners explode a cabeça de outro. Depois de várias tentativas, a cena foi gravada quando o encarregado pelos efeitos especiais, Gary Zeller, atirou com uma espingarda atrás de um manequim, com uma cabeça de gesso, interior de gelatina, e restos de látex, cera, e até um pouco de hamburger. O filme recebeu duas sequências: Scanners II: A Força do Poder (1991) e Scanners III: O Duelo Final (1991).

Videodrome: A Síndrome do Vídeo, 1983

Videodrome: A Síndrome do Vídeo é lançado em 1983, distribuído pela Universal. Apesar de ter sido o primeiro filme de Cronenberg que recebeu suporte de um dos grandes estúdios de Hollywood, o filme não foi muito bem em bilheteria. Mas, mesmo assim, impressionou por seus efeitos especiais, a direção de Cronenberg, a atuação de seus protagonistas, e se tornou um clássico cult, sendo utilizado como maior exemplo quando pensamos em body horror.

Em Videodrome, Max Renn (James Woods), presidente de um canal de TV pequeno que exibe principalmente conteúdo sexual e de nudez, acaba encontrando ilegalmente o sinal de um satélite, chamado Videodrome. A programação deste canal consiste em conteúdo de violência extrema e tortura sexual. Enquanto tenta descobrir quem são os produtores do programa, Max passa a sofrer várias alucinações e situações perturbadoras, com jogos sexuais sadomasoquistas e transformações corporais.

Na Hora da Zona Morta, 1983

Ainda em 1983 Cronenberg lança seu primeiro filme adaptado de um livro. Em Na Hora da Zona Morta, baseado no livro de mesmo nome de Stephen King, conta a história de Johnny Smith (Christopher Walken) que, após acordar de um coma, percebe que tem poderes psíquicos. O filme foi produzido por Debra Hill e foi bem recebido pelo público, com críticas positivas.

A Mosca foi lançado em 1986. Remake do filme A Mosca da Cabeça Branca (1958, dir. Kurt Neumann), ambos os filmes são inspirados pelo conto de mesmo nome de George Langelaan. No filme, o cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) tenta criar uma máquina de teletransporte. Quando vai testá-la, entretanto, algo dá errado, e Seth entra em uma transformação horrenda: seu próprio corpo começa a se transformar em uma mosca, pois o inseto interferiu no teste. 

A Mosca, 1986

O filme foi um sucesso de críticas e audiência em seu lançamento, e ainda hoje figura entre os fãs como o filme favorito entre a filmografia do diretor. A transformação de Jeff Goldblum e os efeitos especiais utilizados chamaram atenção do público. Os efeitos especiais renderam um Oscar na categoria de Melhor Maquiagem a Stephan Dupuis e Chris Walas. 

Em 1988, Gêmeos – Mórbida Semelhança chegava aos cinemas. Os gêmeos idênticos Mantle (Jeremy Irons) são ginecologistas que, se aproveitando da situação, acabam se passando um pelo outro em certas situações. Por exemplo, quando um deles se cansa de uma namorada, ela é “repassada” ao outro, sem que saiba. Entretanto, certo dia, o gêmeo menos sedutor e menos confiante acaba se apaixonando, tornando o relacionamento de ambos os irmãos cada vez mais deteriorado.

Gêmeos – Mórbida Semelhança, 1988

O filme foi levemente baseado em uma história de dois gêmeos, Stewart e Cyril Marcus, também ginecologistas. Desde Gêmeos – Mórbida Semelhança, Cronenberg trabalhou em seus filmes seguintes com o cineasta Peter Suschitzky. 

De 1990 a 2014: Mistérios e Paixões e Mapas para as Estrelas

Os anos 1990 e 2000 trouxeram outros grandes sucessos de Cronenberg. Dessa vez, mais voltado ao suspense e ao psicológico, suas ideias de body horror atreladas à tecnologia não desapareceram por completo, mas descansaram um pouco. As décadas marcam, principalmente, suas incursões no mundo das adaptações de livros que certamente influenciaram seu trabalho.

Mistérios e Paixões, 1991

Em 1991 é lançado o filme Mistérios e Paixões, a já mencionada adaptação do livro Naked Lunch, de Burroughs. A história trata de um exterminador de insetos que, após ter desenvolvido um composto forte para eliminar tais criaturas, acaba assassinando acidentalmente sua esposa e se vê em uma teia de conspirações políticas — que envolve, é claro, insetos gigantes.

Como mencionado anteriormente, este é considerado um dos livros mais controversos de Burroughs, e o motivo é que ele inspirou personagens e situações em sua própria vida. Burroughs também trabalhou como dedetizador, e também acidentalmente matou sua esposa enquanto ambos viviam no México. Personagens que são amigos do protagonista tiveram os nomes alterados, mas são inspirados em Jack Kerouac e Allen Ginsberg. 

Crash: Estranhos Prazeres, 1996

O filme seguinte de Cronenberg foi Crash: Estranhos Prazeres (1996). No filme, um diretor de televisão sofre um acidente de carro e descobre uma cultura underground de vítimas de acidentes automobilísticos que utilizam esses acidentes e sua energia como motivadores sexuais. O filme é adaptação do livro de mesmo nome de J.G. Ballard.

Anos depois, em 2005, Cronenberg discordou publicamente de Paul Haggis ao ter escolhido o mesmo nome, Crash, como título de seu filme. Para Cronenberg, foi um desrespeito com a história criada por Ballard.

Existenz, 1999

O último filme de Cronenberg nos anos 1990 é também um dos mais queridos por seus fãs hardcore. Em Existenz, lançado em 1990, uma designer de jogos que está sendo perseguida por assassinos precisa testar seu último jogo de realidade virtual para saber se ele foi ou não comprometido. 

A década de 2000 rendeu bons trabalhos de Cronenberg, mas um pouco menos conhecidos para o público em geral. Spider – Desafie Sua Mente é lançado em 2002, uma adaptação do livro de mesmo nome de Patrick McGrath, sobre um homem mentalmente instável que perde os limites de realidade e ficção da própria mente, escapando para memórias e momentos criados por ele mesmo em seu período de doença. Em Marcas da Violência (2005), adaptação da graphic novel escrita por John Wagner e com arte de Vince Locke, um homem se torna um herói local após um ato violento, e sua família é quem sofrerá com as repercussões desse ato.

Spider – Desafie Sua Mente, 2002

Fechando a década de 2000, em 2007 é lançado o filme Senhores do Crime, sobre uma adolescente que morre durante o parto e que, em seu diário, deixa pistas de que sua criança pode ser fruto de um estupro envolvendo uma perigosa família russa.

Um Método Perigoso, lançado em 2011, é adaptação do livro de mesmo nome de John Kerr e da peça de Christopher Hampton, que também trabalhou no roteiro. O filme narra como a relação de Carl Jung e Sigmund Freud fez nascer a teoria psicanalítica.

Cosmópolis, 2012

No ano seguinte foi lançado Cosmópolis, adaptação do livro de mesmo nome de Don DeLillo, sobre um jovem bilionário em sua limusine, percorrendo as ruas de Manhattan e vários personagens que fazem seu mundo se desestabilizar. Em 2014 Cronenberg lançou seu último longa-metragem até aqui, Mapas para as Estrelas, sobre uma família disfuncional que vive no centro de Hollywood e a terrível perseguição ao estrelato.

Enquanto esteve ocupado com seus longas-metragens, Cronenberg continuou fazendo curtas ao longo dos anos, principalmente entre as décadas de 2000 e 2010.

Seus talentos como ator

Não sendo somente um diretor de sucesso absoluto entre os fãs de terror e sci-fi, Cronenberg também gosta de fazer aparições como ator em alguns filmes.

Desde Calafrios o cineasta gosta fez uma pontinha em seus próprios longas, algo que se seguiu em A Mosca, Gêmeos – Mórbida Semelhança e Crash: Estranhos Prazeres. Mas Cronenberg também esteve em filmes de outros diretores. Um de seus papéis mais memoráveis foi como o vilão Dr. Philip K. Decker, de Raça das Trevas, lançado em 1990 e dirigido por Clive Barker, a partir de sua obra de mesmo nome.

Raça das Trevas, 1990

Cronenberg também atuou em Blood & Donuts (1995, dir. Holly Dale), Jason X (2001, dir.  James Isaac) e atualmente está com um papel na série Star Trek: Discovery (2020-2021).

Família Cronenberg

David não é o único Cronenberg a fazer sucesso com o cinema. Carolyn Cronenberg, sua segunda esposa — com quem permaneceu casado até seu falecimento em 2017 —  trabalhou como editora de alguns de seus filmes como Enraivecida na Fúria do Sexo, de 1977, e Os Filhos do Medo, de 1979. O casal teve dois filhos, Caitlin e Brandon Cronenberg.

Cassandra, David, Brandon e Caitlin Cronenberg

Caitlin Cronenberg, trabalhou no departamento elétrico e de câmeras em filmes como Cosmópolis, de 2012, e O Homem Duplicado, de 2013. Já Brandon tem feito sucesso como diretor, com os filmes Antiviral (2012) e Possessor (2020), que podem ser classificados como terror e ficção científica, além do uso da tecnologia e do próprio body horror, tão presente na carreira de seu pai.

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David tem outra filha, de seu primeiro casamento, Cassandra Cronenberg, diretora assistente de filmes como EXistenZ, de 1999, e Psicopata Americano, de 2000. Ainda na família, David é irmão de Denise Cronenberg, que trabalhou como figurinista em uma série de filmes, incluindo A Mosca e Existenz (1999), ao lado do irmão.

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.