Fim de Ciclo

A diferença entre o veneno e a cura é a dose. Confira o novo conto exclusivo de Cesar Bravo para a Macabra.

Alguém apareceu na TV e falou sobre a vacina.

Eram três, quatro, meia-dúzia delas, mas ninguém sabia quando chegariam.

Do menor quarto da casa, a menininha brincava com sua casinha de bonecas, simulando uma briga entre a Polly (mamãe) e um bonequinho do Uglyville (papai). Sem imaginar o que passara no ano passado, ou o que ainda teria que passar no seguinte, ela continuava reproduzindo a gritaria dos diálogos, bem baixinho.

Crianças são imunes, eles mentiram.

A imunidade sempre é uma fraude quando a família mergulha no caos. Imune hoje, doente amanhã, vetor de agonias passadas alguns anos depois. Adoecida pelos dias cancerígenos que precisou viver, adoecida pelas palavras duras, adoecida pelas noites cortantes embaladas por gritarias e nicotina.

Da copa, a mulher segue fazendo suas contas. A pandemia foi ruim pros negócios.

Ninguém próximo morreu, mas e daí? Vivemos a era do egoísmo cibernético e qualquer pessoa com dois neurônios funcionais os coloca para trabalhar em benefício próprio.

O homem continua trancado no quarto do meio. Assistindo a filmes antigos sobre morte e depravação. Ele e mulher conversaram semanas antes sobre isso. “Você está se envenenando com esse lixo”, ela disse. Mas pro homem não era veneno, era cura.

Costumavam alugar aquele quarto do meio, mas agora ninguém toca a campainha pra saber o preço.

Três pancadas na porta do quarto e o homem se sobressalta. Ele sabe que é ela. Ele não quer vê-la. Não quer sentir seu cheiro ou saber dos seus problemas. Podiam ter sido felizes naquele ano, mas ela fez dos dias um verdadeiro inferno. Ou talvez o culpado tenha sido ele, porque nada irrita mais um infeliz que ver a felicidade do outro.
Ele abre a porta e pela primeira vez em meses ela está sorrindo.

“Acharam a cura?”, ele pergunta.

“Acharam a vacina, amor! Todos vão ficar bem de novo!”

O homem se desliga do universo e mergulha mais uma vez em si mesmo.

Ele estava bem. Ele esteve bem. Agora, ele não está e não pretende voltar a ficar.

Há trezentos e tantos dias aquele homem via o mundo pela janela. O vizinho da frente que saía sem máscara e acabou matando os pais com a doença. O professor de história que fazia Uber e ficou meio lento de desmemorizado depois da internação, a mulher que esfaqueou o marido porque descobriu que estava sendo traída com a irmã. Dentro de sua casa, o homem viu cada pequena gota de felicidade sendo sugada pela ansiedade, pela raiva, pela pressa. O casamento se tornando um ringue, a comida se tornando amarga, o futuro se tornando um pedaço podre da linha da vida.

“Já tem data pra começar?”, ele pergunta.

O rosto da mulher murcha como uma fruta esquecida no tempo.

“Você não entendeu? Vai voltar a ser como antes, amor! Tudo vai voltar a ser como antes!”

Alguém dispara uma espingarda na TV e o homem fecha a porta sem pedir licença. A única certeza que ele tinha naquele momento, é que a vacina passava bem longe da cura daqueles dias.

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Autor e tradutor, Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo, e há mais de uma década dá voz à relação visceral com a literatura. É autor de romances, contos, enredos, roteiros e blogs. Sua escrita afiada ilumina os becos mais escuros da psique humana. Pela DarkSide® Book, Cesar Bravo já publicou Ultra Carnem, VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue. DVD: Devoção Verdadeira a D., e organizou a Antologia Dark.