Onde está Lovecraft em Lovecraft Country?

Valter Rege, podcaster oficial da HBO para Lovecraft Country, comenta a reconstrução do mundo e das visões de H.P. Lovecraft na série.

*Texto de Valter Rege, cineasta, criador de conteúdo e podcaster oficial da HBO para a série Lovecraft Country.

Quando recebi o convite para participar do podcast oficial da série Lovecraft Country da HBO, meu coração gelou ao saber do posicionamento do autor em vários aspectos referentes ao racismo contra imigrantes, negros, orientais, judeus… Já tinha ouvido falar da sua obra, e embora seja apaixonado por filmes de horror, nunca guardei nomes de autores de livros porque era mais ligado nos filmes de serial killers dos anos 1980 e 1990, como A Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13, O Massacre da Serra Elétrica e até as franquias pipocas como Pânico e Eu sei o que vocês fizeram no Verão Passado.

Porém, raramente tinham protagonistas negros e, assim como as princesas da Disney, as rainhas do grito eram sempre garotas brancas que eu amava contemplar.

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Com os estudos sobre racismo e a falta de representação de personagens negros nos filmes de horror fui abandonando a fidelidade ao gênero que considero o mais cinematográfico de todos, afinal quem melhor que o horror para contar histórias em imagens?

Com Corra!, do Jordan Peele, senti uma sensação de pavor que não tinha há tempos e achei genial colocar o racismo como elemento a ser trabalhado no cinema do medo. Foi pura catarse ver um preto (Daniel Kaluuya) bater de frente com o biotipo de vilão que na maioria das vezes é o protagonista. 

Após a estreia de Lovecraft Country na HBO, comecei a me perguntar onde está Lovecraft nessa narrativa, além dos monstros que aparecem no final do primeiro episódio?

Foi nesse momento que comecei a entender o mecanismo de Misha Green, uma das criadoras da série, ao colocar o racismo em um papel tão aterrorizante quanto os contos de Lovecraft e seus monstros cósmicos criados com tanta genialidade.

Aos poucos fui encontrando Lovecraft, e ele sempre está lá.

O autor é a personificação do racismo, podemos vê-lo quando os homens brancos perseguem os negros na estrada, apenas porque queriam comer. Vemos a mente de Lovecraft no Xerife, na sequência que se passa no condado de Devon, em que ele faz um jogo psicológico com as “criaturas semi-humanas” — é assim que LoveCraft nomeia os negros no poema “On The Creation Of Ni**”.

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Ele também está entre os membros da ORDEM, em Ardham, a confraria de pessoas brancas que querem dominar o mundo, e se divertem vendo o terror psicológico dos negros trancafiados em seus quartos.

E, finalmente entre os vizinhos que aparecem no episódio 3 e fazem a vida de Letitia (Jurnee Smollett) um verdadeiro inferno, pois uma negra ousou se mudar para um bairro de brancos.

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Os pensamentos racistas de Lovecraft estão por toda parte, e a partir disso podemos presumir o quanto é difícil sobreviver em um território criado por um autor que achava que os próprios negros eram os monstros.

Mais genial ainda é a forma como a própria narrativa explica a trajetória do negro ao rackear o sistema mesmo tendo como referência pessoas brancas racistas. 

No primeiro episódio, quando Atticus e uma senhora tem que andar a pé pelo fato do ônibus ter estourado o pneu, ela pergunta para ele qual livro estava lendo no ônibus e ele responde que é a A Princesa de Marte, escrito por Edgar Rice Burroughs, que conta a história de  John Carter, um ex-confederado que lutou pela manutenção da escravidão. A senhora responde que tal fato não pode ser apagado, e assim como o pai de Atticus, Montrose, ela adverte que aquilo é uma perda de tempo, apenas com um olhar.

A resposta de Atticus é genial:

Histórias são como pessoas. Você tenta apreciá-las, apesar das suas falhas.

Curiosamente esse é o mesmo recurso que Misha Green, Jordan Peele e J.J Abrams estão utilizando para reproduzir o mundo criado por Lovecraft. Eles colocam os monstros cósmicos, fazem várias referências ao Necronomicon, o incrível grimório, muito utilizado em várias histórias do autor (que tem uma grande importância na trama), e subvertem toda a obra colocando como protagonista um homem negro, que segundo o líder da confraria de Ardham, Samuel Braithwhite, é mais escuro do que ele pensava.

A série da HBO acaba se transformado em um grande show de entretenimento embutida de um robusto material didático, usando referências históricas como o primeiro jogador negro de beisebol, Jackie Robinson, que logo na primeira sequência elimina um dos monstros mais conhecidos de Lovecraft, o Cthulhu! 

No final, o mundo de Lovecraft está presente e a sua genialidade, intacta.

Quando recebo o feedback do podcast oficial da HBO, em que semanalmente eu, M.M Izidoro e Milena Souza, destrinchamos o episódio da semana, as pessoas nos perguntam sobre como conseguimos aprofundar os conflitos existenciais dos personagens, a resposta é simples: nós ainda vivemos esse terror. E nada melhor do que ilustrar toda essa realidade macabra através do audiovisual.

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Confesso que é muito mais divertido vivenciá-la através das telas dos computadores, mobiles e televisões, afinal de contas essa é a grande graça do horror: chegar ao limite sem se machucar.

Acompanhem o nosso podcast todo domingo às 22h após a exibição do episódio inédito e espero encontrá-los mais vezes por aqui.

Mantenham-se vivos, mas se morrerem apareçam para ler os nossos artigos.

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Gostou do texto sobre a série Lovecraft Country? Acompanhe o podcast da HBO sobre a série, com Valter Rege, Milena Souza e M.M Izidoro, lançado todos os domingos após a estreia dos episódios. Comente com a Macabra no Twitter e Instagram.

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Valter Rege é cineasta e creator, formado em Rádio e Tv pelo Centro Universitário Belas Artes, produtor, diretor, roteirista e finalizador de filmes. Possui um canal com o seu nome, que aborda temas como negritude, homossexualidade e periferia. Sua palestra "Da Favela Para as Telas" provoca o debate sobre a falta de oportunidade para pessoas pretas no mercado audiovisual. O curta-metragem Preto No Branco escrito e dirigido por Rege foi selecionado para o Toronto Black Film Festival 2018. O diretor ainda lançou o documentário O Cinema Me Trouxe Aqui, que aborda temas como homossexualidade, negritude e periferia.