P. Djèlí Clark: “Tornar-se um monstro muitas vezes é uma questão de escolha”

Conheça a trajetória e as influências do autor de Ring Shout: Grito de Liberdade.

A realidade pode ser tão assustadora quanto a mais tenebrosa das fantasias. Por isso, quando um historiador se dispõe a escrever ficção especulativa podemos ter certeza de que estamos diante de algo digno de pesadelos. É isso o que P. Djèlí Clark faz em Ring Shout: Grito de Liberdade, publicado pela Macabra e pela DarkSide® Books.

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A trama se passa em uma realidade alternativa, na qual a Ku Klux Klan conta com monstros malignos do seu lado, chamados Ku Kluxes, que se alimentam do ódio e da morte de pessoas negras. Neste contexto, um grupo de mulheres se dedica a combater tais criaturas demoníacas.

Apesar de ser uma obra de ficção especulativa, Ring Shout conta com um realismo assombroso vindo de um passado não tão distante assim. Historiador, P. Djèlí Clark sabe muito bem como escavar os aspectos mais tenebrosos dos atos praticados pela humanidade.

Quem é P. Djèlí Clark

Nascido em Nova York e criado boa parte da vida no Texas, Phenderson Djèlí Clark passou anos cruciais para sua formação no país natal dos pais, Trinidad e Tobago. Aos 8 anos ele retornou aos Estados Unidos e viveu em Staten Island até se mudar para Houston aos 12. 

Bacharel, mestre e doutor em história, Clark dedica-se à vida acadêmica como historiador, com foco em tópicos como escravidão e emancipação nas Américas. Ele funde seu interesse por história e pela sociedade com ficção especulativa, tendo conquistado prêmios como o Nebula, o Locus e o British Fantasy Award com Ring Shout.

Originalmente batizado Dexter Gabriel, o autor adotou um pseudônimo literário repleto de significado para separar sua vida como autor de ficção de seu trabalho acadêmico de historiador. Além de P. Djèlí Clark, ele já assinou como Djèlí A. Clark, Phenderson Djèlí Clark e A. Phenderson Clark. Phenderson era o nome de seu avô, enquanto Clark é o sobrenome de solteira da mãe. Djèlí diz respeito aos contadores de histórias da África Ocidental. 

As influências de P. Djèlí Clark para Ring Shout

Embora utilize até laptops separados para suas produções acadêmicas e de ficção, foi a pesquisa como historiador que deu a Clark as principais inspirações para Ring Shout. Foi através de uma investigação do mestrado que ele se deparou com depoimentos de ex-escravos e suas descrições para as primeiras manifestações da Ku Klux Klan.

Em entrevista ao site Grimdark Magazine, ele deu detalhes sobre estes depoimentos: “Eles os descreviam [membros da KKK] vestidos às vezes com chifres e outras esquisitices, comparando-os com haints (espíritos incansáveis), e os descreviam praticando atos violentos e monstruosos”. Para Clark, este foi o convite para imaginar algo mais sinistro e sobrenatural do que os capuzes brancos.

Mesmo pendendo para o lado mais fantástico da ficção, o autor tomou o cuidado de não representar os membros da Klan apenas como monstros simplórios: “Isso teria sido muito fácil, tirando a responsabilidade de crimes cometidos por mãos bem humanas. Eu queria transmitir que para seguir este caminho sinistro, para se tornar um monstro, é muitas vezes uma questão de escolha. Você não simplesmente acaba ali. Você sempre tem chances de recuar antes que seja tarde demais”.

O título do livro em inglês vem da tradição da África Ocidental conhecida como ring shout, que também conta com elementos do cristianismo e é associada aos escravos negros, principalmente do estado da Georgia. Considerado um tipo de adoração, o ring shout é conduzido em um círculo nos quais os participantes cantam e dançam respostas colaborativas, quase como em gritos de guerra ou nas interações de músicos com seus públicos. Clark mencionou que a música é um elemento importante para a história e ring shouts são citados na obra. A edição brasileira do livro conta com um texto complementar de Anne Quiangala a respeito dos ring shouts para incrementar a experiência dos leitores.

O filme O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith é citado no livro como fruto de magia e sua narrativa leva as pessoas a acreditarem que a KKK é uma espécie de entidade salvadora que irá livrá-los dos negros. Apesar de ser uma ficção, o longa de Griffith retrata os negros como uma espécie de humanos inferiores e trata a Ku Klux Klan como heróis. A obra já foi considerada um clássico, mas hoje é vista como extremamente problemática por todo o racismo retratado.

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A cultura Gullah também está presente no livro, através dos ring shouts, das artes mágicas de Nana Jean e das traduções de notas entre alguns capítulos. Gullah inicialmente era apenas o nome da língua falada pelos negros no estado da Georgia, mas que acabou ganhando conotações para toda uma cultura de africanos escravizados nos Estados Unidos, que acabaram mesclando diversas línguas nativas com o inglês.

O livro de P. Djèlí Clark ganhará as telas em breve. Em dezembro de 2020 os direitos foram adquiridos para a produção de uma série roteirizada e dirigida por Kasi Lemmons (Amores Divididos) e estrelada por Kiki Layne (Se a Rua Beale Falasse).

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Ring Shout: Grito de Liberdade já está disponível em pré-venda na Loja Oficial da Darkside Books. Comente este post com a Macabra no Twitter e Instagram.

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Renunciei à vida mundana para me dedicar às artes da trevas. No meu cálice nunca falta vinho ungido e protejo minha casa com gatos que afastam os espíritos traiçoeiros. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.