O estado do horror negro: Corra! e além

Em seu texto para o site Black Horror Movies, Mark H. Harris apresenta um panorama do cinema de horror negro e comenta caminhos após o lançamento de Corra!, de Jordan Peele.

* Texto de Mark H. Harris, crítico de cinema e entrevistado do documentário Horror Noire. Traduzido e adaptado do site Black Horror Movies.

Hoje, a posição de afro-americanos em filmes de horror está ligada intrinsecamente com a posição de afro-americanos no cinema como um todo. Isto é, houve um longo caminho desde o homem tribal de olhos selvagens de King Kong, e vimos avanços notáveis na última década, mas ainda há significativos passos a serem dados em direção a um compartilhamento mais equilibrado de protagonismos e papéis que não estão dependentes de estereótipos raciais ultrapassados.

RAÇA E REPRESENTAÇÃO

Assim como houve um pico no destaque de filmes com papéis negros nos anos recentes (evidenciado pelo fato dos números de atores e atrizes negros ganhando Oscars nas três maiores categorias de atuação até agora no século XXI, que já quase dobrou o número de vitórias durante o século XX inteiro), houve também um pico no destaque de filmes de terror apresentando papéis negros. Dentro do ano passado, ou dois anos atrás, filmes como Corra!, Ao Cair da Noite, Uma Noite de Crime 3, O Paradoxo Cloverfield, Kong: A Ilha da Caveira, Melanie – A Última Esperança, Celular, O Convite, Traffik: Liberdade Roubada, A Transfiguração e as paródias Meet the Blacks e Boo! A Madea Halloween, têm pintado rostos negros (por assim dizer) em um gênero em que afro-americanos foram relegados, historicamente, para saciarem a sede de sangue de algum vilão.

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Por causa do recente nível sem precedentes de reconhecimento e aclamação crítica para filmes com protagonistas negros, a situação do cinema de 2010 tem sido comparada com a Renascença do Harlem. Mas esse otimismo deveria ser equilibrado pela realidade de que o número anual de filmes produzidos no geral (e filmes de terror em particular) explodiu nas últimas duas décadas, o que significa que filmes de gênero com destaque negro se beneficiaram para cima dessa tendência. Graças ao aumento da visibilidade do cinema independente e acessibilidade de tecnologias para fazer filmes, mais que o dobro do número de filmes foi lançado em 2016 (795, de acordo com o site The Numbers), do que em 1995 (310). Para os filmes de terror o aumento é similar, com a média de filmes do gênero lançados em cinemas entre os anos 1995-2003 sendo 13.3 e a média de 2004-2017 sendo 27.

Isso dito, enquanto o número de filmes de gêneros com destaques negros aumentou, e enquanto há exemplos de excelência que prosperam em cena, o volume de horror americano (como outros gêneros), permanece em uma relação esmagadoramente caucasiana. Refletindo a sub-representação gerada pela hashtag #OscarSoWhite (ou Oscar tão branco, em tradução livre), logo após o anúncio dos nomeados do Oscar de 2015, o Relatório de Diversidade de Hollywood em 2017, pelo Centro de Estudos afro-americanos Ralph J. Bunche da UCLA, descobriu que, dos 54 filmes de horror mais lucrativos de 2011 a 2015, 48 (89%) tinha elenco com 20% ou menos de atores e atrizes que constavam como minorias raciais. Isso surgiu apesar do fato de minorias representarem cerca de 40% da população dos Estados Unidos em 2015, e pessoas negras comprarem 45% de ingressos naquele ano. 

Corrente do Mal, por exemplo, um dos filmes de terror mais aclamados de 2015, não tem nenhum personagem negro apesar de se localizar na classe trabalhadora de Detroit. Tirando a atriz Alia Shawkat (da qual a etnicidade nunca é mencionada), o elenco do bem visto thriller de sobrevivência de 2016, Sala Verde, é desprovido de minoria mesmo que os antagonistas sejam membros de uma gangue neo-Nazi. Outro gênero de filmes recentes e com destaque, como A Bruxa, da era colonial, filmes de períodos antigos, como A Colina Escarlate e A Mulher de Preto, e os filmes da franquia Invocação do Mal, baseados em casos reais de investigação paranormal, tem a desculpa conveniente de “precisão histórica” para excluir personagens negros. 

Os filmes de Invocação do Mal são parte de uma tendência de terror do momento: as casas mal-assombradas. Começando com Atividade Paranormal, de 2009, a era de “torture porn” da franquia de Jogos Mortais cedeu caminho para sustos mais tradicionais, culminando em grandes quantidades de hits, incluindo as franquias Invocação do Mal, Sobrenatural, A Entidade e Ouija, e ainda filmes únicos como Mama, Quando as Luzes se Apagam, Oculus, o remake de Poltergeist, Evocando Espíritos e Possessão. Um efeito colateral inesperado dessa nova moda foi a exclusão quase total de membros do elenco que fossem afro-americanos porque, como estereótipos de pessoas urbanas, eles não cabiam na visão de Hollywood para o subúrbio (leia: caucasiano) doméstico feliz transformado em pesadelo.

Filmes independentes, porém, não visam tanto o lucro, e portanto não estão tão preocupados com o medo sustentado de que filmes com destaques de pessoas negras tenham problemas em encontrar audiência internacionalmente (uma crença que é, pelo menos, parcialmente refutada pelo Relatório de Diversidade de Hollywood, que descobriu que, enquanto o filme com elenco maior que 50% de minorias não performaram bem no exterior, elencos com menos de 10% de minorias, da mesma forma, tem performances baixas; as melhores performances tem um elenco de minoria entre 21 a 50%), então filmes independentes comprovam mais receptividade para maiores destaques de representações afro-americanas. Essas produções menores e sem estúdios tendem a papéis com aspectos que não necessariamente cabem dentro dos tipos de personagens negros de Hollywood, do qual, no horror, tendem a incluir personagens descartáveis como criminosos, atletas de colegiais, praticantes de voodoo, figuras de autoridade unidimensional e ajudantes dispostos a sacrificar a si mesmos pelo herói.

HORROR URBANO

Isso dito, os típicos filmes de susto indies ainda caem na representação de 40% da população não branca dos Estados Unidos no geral. Filmes com elenco negro que excedem o nível tendem a cair no então chamado subgênero “horror urbano”. Uma reencarnação moderna dos “filmes de raça” em preto e branco e depois dos “blaxploitation”, o “horror urbano” é uma derivação da explosão do cinema afro-americano durante a década de 1990, que foi gerada a partir do sucesso de cineastas como Spike Lee, John Singleton, Robert Townsend, Mario Van Peebles, Julie Dash e Reginald Hudlin, que provaram a viabilidade de filmes negros para os maiores estúdios de Hollywood. 

Ao contrário de trabalhos dos principais cineastas negros, filmes de “horror urbano” tendem a ser de baixo orçamento, direto para locação (com exceção de Contos Macabros, Bones: o Anjo das Trevas, Um Vampiro no Brooklyn, e comédias de gênero como Inatividade Paranormal e Meet the Blacks). Eles frequentemente revelam estereótipos de “hood”, sacrificando o enredo pelo “swagger” do hip hop, como evidenciado em títulos como Zombiez, Vampz, Bloodz vs. Wolvez, Cryptz, Snake Outta Compton, Hood of the Living Dead e Leprechaun in the Hood. Mesmo os exemplos com maior qualidade fizeram pouco mais que uma simulação de sucesso dos filmes mainstream (Pânico se tornou Holla, por exemplo).

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Recentemente, estúdios maiores descobriram que thrillers protagonizados por mulheres negras — Obsessiva, Além da Realidade, O Cara Perfeito, O Intruso, Invasão — chamam a atenção dos cinéfilos, apesar de, novamente, explorarem outros filmes populares (nesse caso, Atração Fatal e semelhantes) pelo conteúdo, deixando o gênero afro-americano sem uma voz definida. Isto é, até Corra!.

CORRA! E ALÉM

É difícil subestimar a importância do filme Corra!, de 2017, para o cinema de horror negro. O filme de Jordan Peele superou as probabilidades e ganhou mais que qualquer filme de horror do currículo do mega-produtor Jason Blum, incluindo as franquias de longa duração Atividade Paranormal, Uma Noite de Crime e Sobrenatural. Ele também estabeleceu um recorde para o mais alto ganho doméstico ($175.4 milhões) para um filme dirigido por um afro-americano em qualquer gênero — título mantido por apenas algumas semanas até Velozes e Furiosos 8, de F. Gary Gray, que deu o pontapé inicial para a estação de verão dos blockbusters (seguido pela explosão inevitável de Pantera Negra no ano seguinte). Se você não conta paródias como amplamente integrada Todo Mundo em Pânico, que garantiu $157 milhões nos anos 2000, ou thrillers de suspense como Obsessiva ($68.2 milhões em 2009), o filme de terror com um elenco amplamente negro que conquistou maior bilheteria antes de Corra! foi O Mistério de Candyman, com $25.7 em 1992 (e mesmo esse filme é centrado em uma heroína branca).

O sucesso de Corra! — tanto comercialmente quanto criticamente, como ele ter ganhado o Oscar de Melhor Roteiro e ter uma avaliação de 99% no Rotten Tomatoes — não somente legitimiza o horror negro com os estúdios (que com o modesto investimento de $5 milhões em seu orçamento ilustra quão pouco Hollywood quer arriscar em filmes afro-americanos no geral, mas especialmente em um gênero não validado como o terror), mas também legitimiza o horror negro para audiências das quais as expectativas para esse sub-gênero são compreensivelmente baixas. Finalmente, legitimiza o horror negro para cineastas que estão interessados no gênero e estabelece um alto nível de excelência, enquanto desperta as possibilidades no gênero como alegoria, sátira e comentário social. 

A história de um homem negro (Daniel Kaluuya) visitando a família branca de sua namorada, somente para descobrir que eles são patologicamente obcecados com sua raça. Corra! enfrenta a dinâmica racial de cabeça erguida, pegando os extremos de Adivinha Quem Vem Para Jantar e As Esposas de Stepford com a disposição de atingir a origem do preconceito racial em todos os meios da vida e em mais aspectos que as pessoas teriam o cuidado de admitir.

É uma aproximação “na sua cara”, que pode não ter ressoado com as audiências não-brancas cinco anos atrás, quando muitas pessoas estavam isoladas em uma bolha de auto-proclamado pós-racialismo, mas dados os incidentes violentos motivados racialmente divulgados, brutalidade policial e a campanha presidencial carregada racialmente de 2016, ele encontrou seu alvo. Resta saber se o horror — um gênero reconhecido por pular em tendências — verá o lançamento de outros filmes negros similares. Mas assim como levou somente um fio de sucesso de um filme negro para convencer os estúdios de que há um mercado para o cinema afro-americano como um todo (algo que aparentemente tem que ser provado a cada década), pode demorar algo parecido para convencer que Corra! é um sucesso. Na verdade, nós talvez precisemos esperar e ver como o próximo filme de Peele, Nós, terá sua performance em 2019 antes que Hollywood realmente perceba o horror negro. Em termos de prover a potencial bilheteria de filmes negros, Jordan Peele pode ser Tyler Perry do horror. 

Os filmes de horror contemporâneos que mais se assemelham com a abordagem de Corra! são os filmes de Uma Noite de Crime. Assim como Corra!, eles utilizam a hipérbole baseada na realidade da desigualdade social. Enquanto a franquia Uma Noite de Crime é mais focada na cisão social, essas divisões são inextricavelmente atadas à raça, cada um dos filmes na série apresentou um personagem principal negro lutando para sobreviver contra os ricos, a maioria caucasianos elitistas que os veem como descartáveis.

Com o contexto de movimentos sociais como o movimento Occupy, Black Lives Matter, #MeToo e Women’s March, esses filmes (cada um aparentemente mais politicamente carregado que o anterior), atingiu a atenção das audiências, impulsionando a franquia para sustentar o sucesso através de três lançamentos, com um quarto, o prequel A Primeira Noite de Crime, lançado em 2018. Notavelmente, é o primeiro na série com maior número de protagonistas negros e com um diretor negro, Gerard McMurray. Em termos de determinar a viabilidade comercial de horror negro nas mentes dos estúdios de Hollywood, A Primeira Noite de Crime é o filme mais importante desde Corra!

Mas abaixo do radar estão filmes de horror com mensagens menos apontadas para a raça que são, não obstante, tão vitais no avanço da presença negra no horror. Mais do que nunca antes, atores e atrizes negros estão sendo elencados em filmes de susto que não são específicos “de raça”. Enquanto alguns anos atrás, a premissa do thriller O Vizinho girava em torno de um homem (Samuel L. Jackson) desprezando a relação interracial de seus vizinhos, o thriller de 2017 Ao Cair da Noite gira em torno de um casal interracial, e ainda sim “raça” não é algo mencionado. O mesmo acontece com o filme de 2016 O Convite. A personagem título do filme de zumbis de 2017, Melanie – A Última Esperança, é negra, mas ela poderia ser caucasiana, asiática, latina, ou qualquer outra raça. O mesmo para a personagem de Gugu Mbatha-Raw em O Paradoxo Cloverfield.

Comparada com a abordagem contundente de Corra! sobre raça, essa estratégia de integração é mais sutil, e parece ser mais comum em filmes indie —  apesar de filmes de gênero do século XXI como Extermínio e Alien vs. Predador tenha conseguido isso bem. Enquanto eles são, talvez, suscetíveis a cair no tipo de mentalidade de “cegueira de cor”, que falha em contar com qualquer nível de sensibilidade racial, esse tipo de assimilação gradual pode ajudar a normalizar a presença de protagonistas negros como um mero reflexo da realidade — algo pelo qual os estudos como o Relatório de Diversidade de Hollywood procuram.

Independentemente se a abordagem de raça em um filme de terror é direta ou sutil, seu impacto seria limitado se o filme em si não fosse bom. O poder de Corra! é que ele não só educa, mas ele também entretém, e nenhum aspecto estaria completo sem o outro. É esse nível de qualidade — não somente de Corra!, mas de uma série de filmes de horror com papéis negros em destaque dos últimos dois anos — que pode ser o período de linha divisória para o horror negro. Claro, ainda existem filmes de “horror urbano” esquecíveis e rústicos, mas equilibrados por filmes mais originais, mais sérios, mais habilmente construídos. Enquanto Corra!, Ao Cair da Noite, Melanie – A Última Esperança, O Paradoxo Cloverfield, Traffik: Liberdade Roubada e O Convite conseguem mais publicidade, filmes recentes de baixo orçamento como A Transfiguração, The Alchemist Cookbook, They Remain, Unsullied, Parasites, The Sickle, Initiation, e Soft Matter têm ajudado de forma similar na aposta pelo horror com protagonismo negro. E no horizonte temos as promessas de filmes como Bad Hair, do criador de Querida Gente Branca, Justin Simien, e Slice, estrelando Chance the Reaper e Zazie Beets, do estúdio indie do momento A24 (Moonlight, A Bruxa, Hereditário, Lady Bird, Ex Machina, O Quarto de Jack, Ao Cair da Noite).  

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O cinema negro dos anos 1990 — incluindo o “horror urbano”, que diminuiu no início do século XXI — estava torcido, esticado e descartado, como se todos os aspectos da vida negra tivesse sido completamente explorado. Foi uma mentira pós-racial que Hollywood disse a si mesmo, prenunciando o rótulo pós-racial que acompanharia a presidência de Obama — um rótulo que Peele estabelece para repudiar em Corra!. Agora, apropriadamente, Corra! é parte da nova grande onda de cinema negro, ajudando a definir uma voz para o horror negro que não será facilmente descartado ou extinguido. 

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Esse texto foi publicado em 2018 e, desde então, alguns outros filmes saíram para ampliar essa lista. No terror, nos últimos dois anos, tivemos filmes como o já citado Nós, que na ocasião ainda não tinha sido lançado, Atlantique, Sweetheart, O Que Ficou Para Trás, Black Box, o tão aguardado A Lenda de Candyman, que deve ser lançado em 2021, entre outros. No Brasil, tivemos o lançamento de filmes como Egum e M8: Quando a Morte Socorre a Vida. E esperamos que, cada vez mais, novos filmes surjam. Estaremos cobrando cada vez mais.

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