Possessor e as armadilhas macabras da tecnologia

E se você pudesse cometer um crime sendo outra pessoa?

Em Possessor, novo filme de Brandon Cronenberg, uma possibilidade macabra se torna real através de um implante cerebral. Uma organização é capaz de fazer acordos e colocar seus agentes para viverem na pele de outras pessoas, literalmente, onde poderão cometer assassinatos e colocar a culpa em vítimas que estão sem o controle de seus corpos. Quando podem recuperar o controle já é tarde demais: a forma dos agentes deixarem os corpos de seus hospedeiros é cometendo o suicídio. 

Tasya Vos (Andrea Riseborough) é uma dessas agentes. Seu trabalho consiste em aprender trejeitos e entrar na vida, na mente e no corpo de pessoas que foram escolhidas e realizar as tarefas “sujas”, em nome dos acordos feitos pela organização. Entretanto, em um dia, tudo dá errado. Tas não consegue finalizar o serviço e fica presa no corpo de sua vítima. 

Possessor foi muito bem recebido em Cannes, recebeu críticas positivas e se tornou um dos filmes de terror preferidos do ano em várias listas de especialistas no gênero. Mas o que faz com que o filme seja tão bem visto assim?

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O uso macabro da tecnologia

Brandon Cronenberg trabalha com um elemento comum em nossas vidas: a tecnologia e tudo que ela pode proporcionar. Em seu primeiro filme, intitulado Antiviral, conhecemos uma rede de negócios que transforma em mercado a possibilidade de vender doenças de celebridades para seus fãs, fazendo com que essas pessoas se sintam mais próximas de seus objetos de adoração. Protagonizado por Caleb Landry James, que vive o jovem Syd March e trabalha em uma das clínicas que vendem essas doenças, ele mesmo é atingido por uma súbita vontade de experimentá-las. Ao ficar doente, entretanto, descobre uma conspiração dentro da empresa em que trabalha.

Em Possessor, a tecnologia atinge pessoas desavisadas. Sem saber o que está havendo, como se desacordadas dentro de seus próprios corpos, é o intruso quem comanda a estrutura física “vazia”, podendo agir da forma que entender ou da maneira acordada pela empresa. 

O medo da falta de controle

Perder o controle de nossas vidas é um dos maiores medos do ser humano. A possibilidade de sermos acusados de um crime que não cometemos, de que alguém interfira em nossas escolhas e possa dominar nossos pensamentos e reflexos é uma ideia aterradora. Possessor também trata a perda de controle através desse dispositivo tecnológico, e mostra, em uma sociedade com essa possibilidade, quais os usos que um advento desses teria se caísse em mãos ambiciosas e “erradas”. 

Em entrevista ao site Bloody Disgusting, Brandon conta como, inicialmente, queria fazer um filme sobre acordar certo dia e não ser você mesmo. “Eu queria observar os modos como precisamos construir e manter identidades para funcionar, conscientemente ou não, como atuar e criar um personagem e uma narrativa é fundamental para a forma como agimos. Então, a gênese do filme é realmente nas cenas domésticas em vez dos elementos de thriller.”

A identidade pública e a particular

A necessidade de conhecer os trejeitos e pensamentos das vítimas que irão se tornar hospedeiros são tamanhos que a própria identidade se torna um assunto a ser observado dentro do filme. Em determinados momentos, ao longo das sequências finais, é difícil compreender se estamos lidando com Tas ou com seu hospedeiro, Colin Tate (Christopher Abbott).

Tas é uma excelente funcionária, disposta a fazer quaisquer sacrifícios para se manter em seu emprego, inclusive abandonar a própria família, que pode se tornar um problema para ela. Mas isso acontece como um processo: seu próprio trabalho exige que ela se desconecte totalmente dela mesma para que seja outra pessoa. 

Possessor também é mais focado em como é interpretar um personagem humano, no conflito entre a identidade interna e externa, e como as duas coisas, de certa forma, são impostas a nós.”

Efeitos Práticos

Mesmo que Antiviral e Possessor sejam filmes totalmente assinados pro B. Cronenberg, é impossível não notar uma ressonância com os trabalhos de seu pai, e isso inclui a utilização de efeitos práticos. 

Em cenas de ambas as obras, tanto Antiviral como Possessor, podemos perceber detalhes que, imediatamente, nos levam aos anos 1980 e 1990, de volta aos filmes de David Cronenberg: utilização de máscaras de látex, de stop motion e modificação de corpos para nos causar horror. Um dos motivos para isso é que Brandon trabalhou como técnico de efeitos especiais no filme dirigido por David, eXistenZ, de 1999.

Em entrevista ao site Daily Dead, Brandon Cronenberg afirma que todos os efeitos utilizados em Possessor foram efeitos práticos. “Eu acho que as pessoas estão muito acostumadas a verem violência de CGI e sangue de CGI. E isso tem uma qualidade vacilante que você não tem quando está gravando com um silicone bem construído.”

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Brandon preferiu utilizar os efeitos práticos não por ser contra ao CGI e aos efeitos visuais, mas principalmente porque ele precisava de uma resposta violenta para discutir a própria psicologia de Tasya, como comenta ainda na entrevista. A ideia é que esse uso demonstre que a própria personagem tem uma relação com a violência, é levada a isso através de seu trabalho: “estamos em um espaço muito mais subjetivo lidando com a relação complicada com a violência dela, e como isso também está moldando seu caráter fora do trabalho que ela faz”. 

Família Cronenberg

Brandon Cronenberg é filho de uma figura carimbada no meio do terror. Seu pai é David Cronenberg, cineasta reconhecido pelo trabalho nos filmes A Mosca (1986), Scanners: Sua Mente Pode Destruir (1981), Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983), entre tantas outras obras. Uma das principais características do trabalho de Cronenberg pai é a forma como une a tecnologia (mesmo nos anos 1980) com o horror corporal. 

O horror corporal, ou body horror, é um subgênero do horror que, através de cenas bastante gráficas, mostram alterações corporais. Pensando nos limites da tecnologia e em como ela pode alterar o ser humano — não somente seu corpo, como também sua mente —, David Cronenberg fez diversos filmes a partir desse debate: até onde a tecnologia pode nos levar? Brandon Cronenberg, apesar de seu trabalho singular, segue um caminho semelhante ao do pai. 

A mãe de Brandon, Carolyn Cronenberg, trabalhou na equipe de alguns filmes de David como Enraivecida na Fúria do Sexo, de 1977, e Os Filhos do Medo, de 1979. O casal tem outra filha, Caitlin Cronenberg, que trabalha no departamento elétrico e de câmeras em filmes como Cosmópolis, de 2012, e O Homem Duplicado, de 2013. Brandon ainda tem outra meia-irmã, Cassandra Cronenberg, diretora assistente de filmes como eXistenZ, de 1999, e Psicopata Americano, de 2000. 

Também fazia parte da família Denise Cronenberg, que trabalhou como figurinista em uma série de filmes, incluindo A Mosca e eXistenZ (1999), ao lado do irmão David. Denise infelizmente faleceu em maio de 2020, mas deixou um legado de trabalho incrível. 

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Acordo cedo todos os dias para passar o café e regar minhas plantas na fazenda. Aprecio o lado obscuro da arte e renovo meus pactos diariamente ao assistir filmes de terror. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.