Velhos demais para isso tudo

Um ato de desespero desponta na crise quando a chegada inesperada de um velho amigo faz vida e morte se colocarem em perspectiva na mesa do café.

O interfone tocou e o velho caminhou até ele sem muita vontade. Provavelmente era o síndico cobrando o condomínio, ou o rapaz da farmácia… qualquer um desses esfomeados que exigiam o que ninguém tinha condições de pagar no momento.

Tirou o gancho do apoio vertical.

— Pois não?

— Jossânio?

— Quem quer saber?

— Sou eu Jossânio, o Coimbra.

— Que Coimbra?

O homem do outro lado do bufou tão alto que Jossânio pensou ter caído a linha.

— Coimbra, pô, o Coimbra da DP. Quantos Coimbras você conhece?

Mais algum silêncio de Jossânio.

— Tá aí ainda, companheiro? — o homem chamado Coimbra insistiu.

— Tô, tô sim.

— E vai demorar muito pra me deixar subir?

Jossânio precisou de uns segundos.

— Você não tá doente, né?

— E alguém tem saúde na nossa idade?

Com uma risadinha bem curta, o dono da casa apertou o botão que destravava o portão do prédio e caminhou até a sala.

*

Coimbra era velho, magro como um osso deixado no sol e pintava os cabelos de preto carbono. A voz, cansada pelo cigarro, parecia saída de um amplificador vagabundo. Jossânio era um pouco mais novo, uns três anos, mas a coluna artrítica o fazia parecer bem mais velho.

À porta do apartamento minúsculo, os dois homens se estudaram antes de engatarem a conversa.

— Já faz o quê? Vinte anos? — Jossânio perguntou.

— Vinte e dois. Posso entrar ou tenho que ficar parado aqui feito uma samambaia?

Jossânio finalmente mostrou os dentes.

— Você é muito feio pra ser uma samambaia.

Quando chegaram mais perto, não souberam exatamente como se comportar. Nenhum deles estava de máscara, nenhum deles estava de luva, e mesmo com a TV falando que alguém andava jogando Detefon nos velhos, as duas mãos direitas acabaram se apertando.

— Tá tudo bem em casa? — Jossânio perguntou.

— Fiquei viúvo na semana passada. A Marli tinha problema no coração, ela passou mal e não tinha UTI pra ela.

— Eu lamento.

— Eu também.

Jossânio esperou um pouco do peso se dissipar antes de perguntar:

— Aceita um café?

— Quero sim. Saí de casa cedinho, nem deu tempo de molhar a goela.

Foram para a cozinha, onde Jossânio passou o pó, e Coimbra se sentou à mesa. Conversaram um pouco sobre alguns amigos, quem já tinha morrido, quem ainda penava na vida, mas bastou o café ficar pronto pra que Jossânio chegasse ao ponto de maior curiosidade:

— O que fez você lembrar de mim depois de todo esse tempo? Fiquei feliz com a visita, mas não deixa de ser estranho, ainda mais com essa pandemia matando gente lá fora.

— Pandemia nada, isso aí é coisa da esquerda, dos comunistas.

— Eu fui da esquerda na época do Lula.

— Ninguém é perfeito.

Mais silêncio. Dois goles em cada café.

— O povo tá enlouquecendo a troco de nada — Coimbra voltou a falar. — Matar… tem muita doença que mata, até caganeira pode matar.

— Mas essa não tem cura.

— O presidente diz que tem.

— Se tá falando do milico e da Cloroquina, aquela merda não cura nem malária direito.

— Isso é o que o Bonner anda dizendo no jornal, mas a verdade é outra. Pensa comigo, Jossânio, Cloroquina é barata, azitromicina é baratinha também, e o remédio de piolho é quase de graça. São os laboratórios, entende? Estão sabotando o governo porque eles querem um remédio que custe os olhos da cara.

— Desde quando se tornou farmacêutico, Coimbra?

— Você sempre foi teimoso.

— E você, precipitado.

— Estou com câncer.

Jossânio parou como estava: xícara à altura do queixo, boca entreaberta. Corpo travado.

— Começou no estômago, mas já tomou todo o resto.

— Você ainda fuma?

— Comecei de novo. Se eu vou morrer de qualquer jeito, prefiro morrer com um cigarro na boca.

— E antecipar a morte?

— E pra que ficar vivo com uma doença me comendo por dentro? Pra perder pedaços?

Era uma reflexão poderosa, Jossânio não podia negar.

— Eles nem vão me tratar, Jô. Com essa gripe maldita acabando com o sistema de saúde, a gente que é velho deixou de ser prioridade.

— E alguma vez um velho foi prioridade nesse país?

— Só pros vendedores de plano funerário. Mas eu vim por outro motivo: quero fazer uma confissão. E também oferecer uma oportunidade. — Coimbra se abaixou sem sair da cadeira, pareceu coçar o tornozelo. Quando a mão direita subiu, ela trouxe uma arma, um pequeno revólver. Ele o colocou sobre a mesa.

— Por que isso está na minha cozinha? E por que, em nome de Deus, você ainda carrega uma arma?

— Preciso dela pra me proteger. Você só trabalhou com a bunda na cadeira, mas gente como eu, bandido não esquece. Ando armado desde que me aposentei do batalhão. Se você quer saber, precisei dela duas vezes.

— Eu não quero saber. Lamento que esteja doente, Coimbra, lamento de verdade. Mas minha vida mudou um bocado nos últimos vinte anos.

— Dói, sabia? Dói como se o meu estômago estivesse encolhendo. Depois me sobe um azedume pela garganta que parece feito de brasa. Andei cuspindo sangue no mês passado, sabe o que eles fizeram? Me passaram outro desses antiácidos vagabundos que não revolvem nada.

Lá fora, alguém acelerou um carro com o som no talo, chamando todo mundo de covarde e convocando a população às ruas, para uma nova passeata contra o lockdown do governador que (aparentemente) gostava mais do Keanu Reeves do que da mulher dele. Jossânio se levantou e fechou a janela.

— Povo idiota.

— Eu vou a todas as passeatas. Gosto do governo, acho que o mundo era mais seguro quando as pessoas tinham medo da gente.

— Ninguém tinha medo da gente, tinham medo do Dops. Tinham medo do pau de arara.

— Dá na mesma. Nesse país o povo não sabe diferenciar uma farda de bombeiro, do uniforme da polícia.

— Foi fazer o que no meio dessa gente? Tá aposentado, tranquilo, tá na vida mansa, como a gente costumava falar.

— Eu queria pegar essa gripe maldita. Queria que ela me matasse, do mesmo jeito que tá matando esse bando de velho.

— Por causa da dor? Do câncer? — Jossânio se compadeceu.

— Eu tô usando fralda por baixo. E eu tô cagando tão mole que às vezes nem sinto sair.

Os dois se encararam de novo. Jossânio pensou no café, que costumava soltar um pouco seus intestinos. Teve vontade de rir, mas se controlou o suficiente. Rir seria bom nos dias atuais, mas rir da desgraça de outra pessoa não parecia uma coisa boa.

— Você devia procurar outros médicos. Pedir ajuda… pros seus filhos, sei lá… acho que qualquer coisa seria melhor que morrer de falta de ar.

— Nisso você tem razão.

— Então vai! Procura a ajuda dos seus filhos!

— Não, você tinha razão na outra parte — a mão foi pra cima do revólver —, quando falou que qualquer coisa seria melhor que morrer de falta de ar. Foi por isso que eu vim, porque penso do mesmo jeito.

Coimbra empurrou a arma na direção do amigo.

— Você vai me matar.

Jossânio empurrou de volta. — Não. Não vou.

— Vai sim. Você vai fazer isso por mim — Coimbra a devolveu à frente.

Jossânio se levantou.

— É melhor você ir embora, Coimbra. Vá em paz, e desejo que você se cure, principalmente dessas ideias horríveis. Depois de tanto tempo, eu pensei que ficaria feliz em rever meu amigo, mas não foi o que aconteceu.

— Eu comi a sua mulher. Quando a Cleide era viva, eu trepei com ela um monte de vezes.

É bastante provável que Jossânio tenha descoberto meia-dúzia de músculos faciais que até então desconhecia, porque seu rosto ficou tão duro, tão petrificado, que seria possível poli-lo com um esmeril.

— Não vai falar nada? — Coimbra insistiu.

— Não vou matar você. Não vou nem tentar.

— E vai ser exatamente o corno manso que a gente pensava que você era… quer saber, Jô, é muita sorte se o muleque for teu. A Cleide engravidou tarde, tinha perto de quarenta, né? Naquele ano ela tava impossível na cama, foi no ano que você passou seis meses em Brasília, na cola do Curió. Fiquei até assado.

— Sai da minha casa.

— Vai precisar atirar em mim, Jô. Por que não faz isso de uma vez? Por que não apanha essa bosta de revólver e me coloca pra dormir?

Jossânio se sentou.

— Porque você está mentindo. O que eu posso fazer é pegar esse revólver e atirar nos seus dois joelhos. Além de você apodrecer de câncer, vai apodrecer sentado.

— Você não vai fazer uma coisa dessas. Não é cristão.

— E o que seria cristão depois de ouvir essa sujeira?

— Matar o amante.

Os dois se encararam de novo. E Jossânio deu um salto sobre a mesa, tomando o revólver para sim.

— Isso, faça o que deve ser feito — Coimbra incentivou.

Mas Jossânio conferiu o tambor, retirou as balas e jogou todas pela janela. Depois devolveu a arma ao centro da mesa.

— Por que fez isso?

— Pra não correr o risco de fazer o que eu tô com vontade.

— Não acredita em mim?

— Prefiro acreditar na Cleide.

— Prefere acreditar? Isso não faz nenhum sentido.

— Pois faz sentido pra mim. Essa doença maldita, por exemplo: se é verdade que vai morrer todo mundo, ou que esse vírus é uma criação dos norte-americanos, dos chineses ou de um comunista bêbado da Bielorrússia, eu não dou a mínima. Desisti dos jornais quando trocaram o ministro da saúde pela primeira vez.

Jossânio foi até o armário e apanhou uma máscara, de uma caixa que estava guardada por lá.

— Eu nem sei se acredito que essa doença prefere os velhos, só uso essa porcaria por precaução.

Colocou a máscara no rosto com alguma destreza. Caminhou até a porta e a abriu. Já ia saindo quando o outro perguntou:

— Não quer mesmo saber como aconteceu comigo e a sua Cleide?

Jossânio se deteve por um instante.

— Aprendi a não acreditar em pessoas desesperadas. Não esquece de encostar a porta quando resolver ir embora.

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Autor e tradutor, Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo, e há mais de uma década dá voz à relação visceral com a literatura. É autor de romances, contos, enredos, roteiros e blogs. Sua escrita afiada ilumina os becos mais escuros da psique humana. Pela DarkSide® Book, Cesar Bravo já publicou Ultra Carnem, VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue. DVD: Devoção Verdadeira a D., e organizou a Antologia Dark.