Se você está nessa vida de fã de terror há algum tempo, deve saber que todos os anos milhares de projetos são abandonados, esquecidos, ou mesmo cancelados. Como exemplo, temos os filmes de A Múmia que teria sido feito por Clive Barker ou até O Monstro da Lagoa Negra de John Carpenter. Essas histórias acabam se tornando quase lendas que contamos em volta da fogueira: “Você viu? Encontraram um fragmento do suposto roteiro que teria sido escrito por aquele roteirista, para aquele diretor trabalhar naquele filme”.
As histórias desse tipo de projeto que nunca viu a luz do dia são várias. Às vezes nos surpreendemos quando eles realmente são lançados — o Nosferatu, do Eggers, era um projeto antigo que muitos acreditavam que nunca veria uma sala de cinema, por exemplo. Mas não raro esses projetos vão direto para a lixeira.
Só que alguns deles sobrevivem nos corações dos fãs. Alguns encontram os fóruns de internet. E os fãs gostam de especular o que teria sido se aquele roteiro tivesse chegado, de fato, às salas de pós-produção.
Um caso desses, do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, voltou à tona recentemente com o documentário dirigido por Brandon Salisbury intitulado George A. Romero’s Resident Evil. O pai dos zumbis com o maior jogo dessas criaturas da história? Sim. Isso quase aconteceu, e a Macabra te conta como foi.
Uma breve retrospectiva
Se você passou os últimos sessenta anos em uma caverna, talvez não saiba, ou não se lembre, quem foi George A. Romero, um dos maiores cineastas que tivemos na história do horror moderno. Apesar de histórias dessas criatura permearem o imaginário humano há muitos anos, foi ele quem nos deu o zumbi que estamos acostumados hoje. Quando lançou A Noite dos Mortos-Vivos, em 1968, Romero revolucionou a concepção que temos dessas criaturas e nos deu um dos maiores clássicos que o terror já conheceu.
Depois desse filme, Romero ainda trouxe outras colaborações ao subgênero nas décadas seguintes, com Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985). O que era inicialmente uma trilogia, que conta como a Terra está sendo infestada por zumbis e como os sobreviventes estão se virando, com várias pitadas de críticas sociais, logo se tornou uma série mais longa, nos anos 2000, quando Romero retornou a essas criaturas com os filmes Terra dos Mortos (2005), Diário dos Mortos (2007) e A Ilha dos Mortos (2009).
Romero faleceu em 16 de julho de 2017, com a idade de 77 anos, mas ainda trabalhando em projetos com zumbis. Na época de sua morte, estava com dois filmes para serem realizados, Road of the Dead e Twilight of the Dead. Também estava escrevendo um livro que se passava no mesmo universo de sua série “Dos Mortos”. O livro foi completado por Daniel Kraus (autor de Exumados), que utilizou as anotações de Romero para terminar a obra intitulada The Living Dead.
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Não é exagero dizer que as obras de zumbis que vieram depois de 1968 beberam da fonte que Romero criou. De uma forma ou de outra, essas histórias foram inspiradas e impactadas pela produção de quem ficou considerado como “pai dos zumbis”. Isso inclui séries de sucesso, como The Walking Dead, e isso também se aplica, em certo nível, a Resident Evil.
A franquia mais rentável dos jogos de horror
O primeiro jogo de Resident Evil foi lançado em 1996, criado por Shinji Mikami e Tokuro Fujiwara para o Playstation. No Japão, o jogo leva o nome de Biohazard. Mas, antes de Resident Evil ou Biohazard, existiu Sweet Home.

Sweet Home foi um jogo dirigido por Tokuro Fujiwara, lançado em 1989 pela Capcom para o Famicom (que teve seu nome posteriormente alterado para NES, como o conhecemos até hoje). O jogo era inspirado no filme de mesmo nome, lançado no mesmo ano, dirigido por Kiyoshi Kurosawa (famoso por seus filmes de terror, cujo mais conhecido, talvez, seja Pulse, de 2001). Na história, tanto do filme quanto do jogo, uma pequena equipe de filmagem entra em uma mansão abandonada e encontra várias pinturas que valem muito dinheiro, mas encontram também uma série de atividades sobrenaturais.

Sweet Home foi a maior inspiração para a criação de Resident Evil, que, de início, ainda em 1993, era para ser algo semelhante a um remake do jogo anterior. Shinji Mikami surgiu como diretor, e Fujiwara como produtor, que esperava fazer em Resident Evil coisas que não havia conseguido em Sweet Home. Mas, como a Capcom havia perdido os direitos do jogo de 1989, um universo novo foi criado.
Essa nova criação se saiu muito bem. Hoje reconhecemos Resident Evil como um dos jogos que transformou o survival horror — e também o reconhecemos como seu maior representante. Se tornou a franquia de jogos de horror mais rentável, com uma multidão de fãs, sempre conquistando as novas gerações.
Apostando no audiovisual
Ainda nos anos 1990, os responsáveis pelo sucesso do jogo queriam criar algo enorme para o lançamento da sequência, Resident Evil 2, em 1998. Para isso, eles foram diretamente à fonte da criação de pesadelos com zumbis: Romero.
Um comercial foi criado para o lançamento de Resident Evil 2, protagonizado por Brad Renfro como Leon Kennedy e Adrienne Frantz como Claire Redfield, dois personagens principais no jogo. O curta foi divulgado apenas na televisão japonesa, devido a uma cláusula no contrato de Renfro. Hoje, porém, é cultuado entre os fãs.
Para além de Romero na cadeira de direção, o comercial contou com as mãos talentosas do astro dos efeitos especiais Screaming Mad George. E mesmo tendo sido veiculado apenas no Japão, o comercial de Romero fez os olhos dos fãs brilharem — e trouxe ideias para os executivos responsáveis pelos direitos da, então, recém-nascida franquia.

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Conflitos criativos
Quando o comercial de Romero chamou tanta atenção, ele foi logo considerado para assumir a direção de uma possível adaptação do jogo para as telonas. Quem detinha os direitos de adaptação de Resident Evil era a empresa Constantin Film, produtora criada por Bernd Eichinger que já havia trabalhado e lançado grandes obras, como A História Sem Fim (1984) e O Nome da Rosa (1986) — ambos, como podemos notar, adaptações de livros célebres.
E tudo ia bem. Antes de Romero se unir ao projeto, quando compraram os direitos para adaptar Resident Evil, a Constantin havia chamado o roteirista de Halloween 4: O Retorno de Michael Myers, Alan B. McElroy, para fazer um primeiro tratamento para o filme. Com várias mudanças em relação ao jogo, não se sabe exatamente se houve uma aprovação interna ou não. Depois de verem o roteiro, sabe-se que a Capcom entrou ativamente na produção com a Constantin.
E, então, entra Romero.
Quando se soube que Romero seria diretor da tão aguardada adaptação do jogo, houve alvoroço entre os fãs. A internet ainda caminhava naqueles dias, mas revistas especializadas em jogos e cinema de terror circulavam por aí e contavam todas as notícias conforme elas iam aparecendo. Alguns detalhes da produção, que escapavam aqui e acolá, deixavam os fãs impacientes e curiosos.
Certo dia, porém, Romero não estava mais presente no projeto. Depois de alguns anos de acompanhamento ferrenho da produção, a notícia que chegou aos fãs era que Paul W.S. Anderson seria o diretor. O que aconteceu, então, para que esse projeto dos sonhos fosse tão facilmente abandonado e entregue nas mãos de outras pessoas?
Aparentemente, Eichinger não achou que a adaptação de um jogo de zumbis devesse ter tanta violência.
A adaptação de Romero
Romero mergulhou fundo no universo dos jogos para tentar se aproximar ao máximo de uma boa construção de mundo para os fãs dos já muito bem-sucedidos jogos (àquela altura, os dois primeiros jogos da série haviam sido lançados e o terceiro despontava no horizonte).
Depois que a direção de Romero foi substituída, e com o passar dos anos — principalmente depois dos filmes de Anderson, que não satisfizeram a sede de uma adaptação decente de Resident Evil —, os fãs começaram a se perguntar como teria sido o roteiro desse possível filme de Romero. E o que antes eram apenas fragmentos, logo se tornou completo nos fóruns da internet.
Havia, sim, algumas diferenças entre a adaptação e o filme. Chris Redfield, por exemplo, seria um nativo-americano do povo Mohawk, namorado de Jill, que não saberia que ela era uma agente de elite. Mas muitos dos detalhes do primeiro jogo permaneceriam, como a icônica mansão em que a história se desenvolve e a dinâmica dos personagens e das criaturas. Cenas em que as pessoas da cidade de Raccoon City são evacuadas de suas casas serviriam de comentário sobre a violência militarizada, tão comum nas obras do cineasta.
A maior perda com a não realização desse filme, porém, pode ter sido em relação ao visual. Quando Romero aceitou o projeto, contatou Greg Nicotero, junto à sua equipe da KNB, que naquela época já era um dos maiores nomes dos efeitos especiais de terror. Nicotero não perdeu tempo e chamou um nome que daria um peso a mais para esse dream team: Bernie Wrightson, mestre das histórias em quadrinhos da Eerie e Creepy. Wrightson havia trabalhado com Romero em Creepshow, ao lado de Stephen King e Tom Savini, e ficou empolgado com a possibilidade de fazer o design da criatura em Resident Evil. O Tyrant de Wrightson é assustador, mas nunca viu a luz do dia.
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Em entrevistas, Eichinger, o produtor da Constantin, afirmou que Resident Evil “não era um jogo gore e violento” e que a adaptação de Romero era gore e violenta demais.

Os fãs ficaram chocados com a afirmação, claro. A questão, para a Constantin, era fazer um filme vendável para públicos menores. Um filme classificado como R, por exemplo, ou apenas para maiores de 18 anos, não venderia tão bem, diminuiria as possibilidades de investimento.
Apesar de ter tido um retorno válido, com cerca de 103 milhões de dólares de bilheteria (com um orçamento de cerca de 33 milhões), o filme não foi um fracasso, tecnicamente. Mas os fãs guardam essa mágoa ainda hoje, e não são muito favoráveis a essa adaptação.
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