Alguns eventos históricos ressoam ao longo do tempo, mesmo quando se passaram há algumas centenas de anos. Episódio consagrado como uma das maiores injustiças, os julgamentos de Salém seguem sendo referenciados na cultura pop. Uma das peças de maior destaque que utilizam essa ambientação é As Bruxas de Salém, de Arthur Miller. Em 2025, a peça foi encenada no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, entre os dias 04 de setembro a 05 de outubro, com direção de Renato Carrera.

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A Macabra realizou uma entrevista com o diretor onde ele nos conta um pouco de suas inspirações e como essa peça permanece atual.
Dramaturgo e desobediente
Arthur Miller ficou conhecido por suas obras potentes e pelas “polêmicas” que envolveram sua vida. Sua obra mais famosa, a peça de 1949 Morte de um Caixeiro Viajante, foi a primeira a ganhar três dos mais importantes prêmios do teatro mundial e do norte-americano: o Pulitzer, o Tony e o prêmio do New York Drama Critics’ Circle (o Círculo de Críticos de Teatro de Nova York). Sua peça seguinte, originalmente chamada The Crucible, mas que ficou conhecida no Brasil como As Bruxas de Salém, estreou na Broadway em em 1953, e anos mais tarde ganhou uma adaptação para o cinema protagonizada por Daniel Day-Lewis e Winona Ryder.

Em sua vida pessoal, Miller ficou conhecido como uma pessoa bastante indócil. Em plenos anos 1950, em 1956, Miller foi chamado ao House Un-American Activities Committee (Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos), após ter sido acusado de participar de reuniões do Partido Comunista. Logo depois, em 1957, foi considerado culpado de desobediência ao não entregar seus amigos do suposto círculo literário afeito ao comunismo, mas sua condenação foi anulada logo em seguida, em 1958, pelo U.S. Court of Appeals (Tribunal Federal de Apelação). Em meio a tudo isso, divorciou-se de sua esposa do colégio e casou-se com Marilyn Monroe, de quem separou-se em 1961 e casou-se com a fotógrafa austríaca Inge Morath.
Um clássico da dramaturgia mundial
As Bruxas de Salém, talvez principalmente por sua adaptação cinematográfica e pelo tema, que segue atual e chamando a atenção do público, se tornou sua peça mais conhecida, e tem sido adaptada para o teatro — inclusive o brasileiro — ao longo das últimas décadas. Este ano, em 2025, Renato Carrera a adaptou para o teatro carioca.

Na história, que se passa 1692, na cidade puritana de Salém, Massachusetts, o fazendeiro John Proctor (interpretado na peça por Marcel Giubilei) decide pôr fim ao romance com sua jovem amante, Abigail Williams (Elisa Pinheiro), sobrinha do Reverendo Parris (Carmo Dalla Vecchia), ministro local. Tomada pelo ressentimento, Abigail lidera um ritual oculto com outras jovens da comunidade — entre elas a filha e a escravizada do reverendo — pedindo a morte de Elizabeth (Patrícia Pinho), esposa de Proctor. O ritual é descoberto por Parris, e as jovens são levadas a julgamento. A partir daí, o medo, as mentiras e os interesses pessoais se transformam em histeria coletiva, resultando na condenação de mais de 150 pessoas por bruxaria. O juiz responsável pelos julgamentos foi interpretado por Vanessa Gerbelli, e a peça esteve em cartaz entre os dias 04 de setembro e 05 de outubro.

O espetáculo se desenrola em um cenário composto por passarelas e grandes telas que projetam, ao vivo, imagens captadas durante a apresentação. Um clássico da dramaturgia mundial ganha vida com máxima potência e impressionante atualidade temática. A encenação aposta na força dos 16 atores em cena, presentes durante toda a peça, criando uma atmosfera de tensão contínua, como em um verdadeiro thriller. A relação física e emocional entre ator e plateia transforma o público em cúmplice e juiz, ampliando os limites do teatro e da experiência coletiva.
A mente humana é também o horror de nossa espécie e o teatro está aí para nos mostrar.
- O que o motivou a revisitar As Bruxas de Salém neste momento, e qual foi o maior desafio em atualizar a peça para o público brasileiro de hoje?
O motivo existe desde 1996 quando fiz parte do elenco de uma montagem ainda na Uni Rio. Sempre pensei em montar. Há 7 anos atrás, Marcel, que interpreta o Proctor, me pediu um projeto e a partir daí começamos esta empreitada. Não fizemos nenhuma adaptação do texto. Ele está na íntegra, com pequenos cortes. A encenação traz para o Brasil a partir da proposta de cenário de Daniel de Jesus, remetendo ao 8 de janeiro e ao momento atual onde as Fake News ainda dominam o mundo.
- As projeções e filmagens ao vivo criam uma camada de vigilância constante sobre os personagens. Essa estética nasceu de uma leitura direta da dramaturgia de Miller ou foi uma forma de tensionar o público a se sentir também “observado”?
As duas coisas. Mas o principal é poder revelar ao público detalhes da interpretação dos atores e dos personagens e ainda pontos de vista diferentes na mesma cena, fazendo com que o público também possa editar a imagem que deseja assistir e tirar suas próprias conclusões.

- O elenco em cena o tempo todo mantém a tensão como se estivéssemos dentro de um julgamento contínuo. Como diretor, como você equilibrou essa energia coletiva sem perder as individualidades dos personagens?
Tivemos muitos ensaios com o elenco todo em cena e compondo um lugar que chamávamos de “entre”. Este posto de observador, dentro e fora de cena. Não era o personagem mas poderia ser o “fantasma” a “alma” ou o “pensamento” do personagem em confronto com o do próprio ator a partir do que acontecia em cena.
- A peça lida com histeria coletiva e manipulação política — temas que parecem sempre atuais. Como foi equilibrar a leitura histórica com o diálogo direto com o nosso presente?
O texto magistral de Miller já coloca tudo em pauta. Não foi muito difícil, o que fizemos foi dar alma aos personagens a partir destes conflitos que ainda hoje, infelizmente, são profundamente atuais. Escavar cada personagem, cada ator, cada alma foi um exercício muito divertido.

- As Bruxas de Salém já recebeu diversas adaptações para o teatro, o cinema e até a ópera. Qual foi o ponto de partida para encontrar uma assinatura própria para essa montagem brasileira?
A tensão e o clima eletrizante de suspense foi o primeiro norte. Todos foram microfonados para que o texto chegasse com facilidade aos ouvidos, juntamente com a trilha sonora tocada ao vivo, criada e executada por Gustavo Benjão, que esteve em todos os ensaios, em conjunto a estética da cena que nos remetia ao Brasil, vieram diretamente dos ensaios. Trabalho sempre com a prática, com ideias colocadas em cena corporalmente, a preparação vocal de Carol Futuro e a direção de movimento de Maria Alice Pope foram fundamentais. è claro sempre com a produção primorosa de Bruno Mariozz organizando tudo.
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- Você já dirigiu clássicos de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos. Em que medida sua experiência com dramaturgia brasileira influenciou sua abordagem de Arthur Miller?
Lidar com um clássico é sempre desafiador, mas achei que já estava na hora de partir para autores estrangeiros e com grande elenco. Todos são clássicos e por isso são universais e eternos. Sempre existirão montagens e mais montagens destes autores. O teatro nunca acaba e um dos motivos são os clássicos.
O teatro sem ator não existe. Sou diretor para poder aprender mais como ator.
Como foi a colaboração com atores de trajetórias tão diversas, como Carmo Dalla Vecchia, Vanessa Gerbelli e Elisa Pinheiro?
Todos os atores entraram em uma harmonia impressionante. Estávamos em um navio e ele só conseguiria seguir se todos estivessem na mesma onda. A entrega de cada um foi emocionante. Sem isso não existiria a peça. O teatro sem ator não existe. Sou diretor para poder aprender mais como ator.
- O que mais te surpreendeu na reação do público carioca à peça até agora? Teve alguma reação inesperada, um silêncio ou aplauso em um ponto específico, que mudou a sua percepção da montagem?
Tinha dias que tínhamos 800, 900 pessoas em silêncio. Por várias vezes, olhava do fundo do teatro e as cabeças não se mexiam, já com 1h30min de peça. Isso é belo e assustador no teatro. Lindo de ver 17 pessoas no palco e mais de 12.000 pessoas frequentando o teatro. Uma joia de resistência em meio a era eletrônica. A arte do encontro se fez presente. Foram momentos inesquecíveis.

- No fundo, as acusações de bruxaria em Salém eram sobre projetar monstros no outro. Esse processo de demonização social tem muito em comum com a lógica do terror. Você pensou nessa montagem como uma reflexão sobre como a sociedade fabrica os seus próprios monstros?
Totalmente. Somos responsáveis por nossa destruição. A mente humana é também o horror de nossa espécie e o teatro está aí para nos mostrar.
- A peça tem momentos que lembram um filme de terror psicológico, com rituais, possessões e histeria coletiva. Quais referências do cinema ou da literatura de horror te influenciaram nessa encenação?
Um dos filmes que nos influenciou foi A Vila. O movimento do cinema expressionista também. A movimentação de câmera de A Bruxa de Blair, ângulos de O Bebê de Rosemary, Brian de Palma entre tantos outros também nos influenciaram.
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Por enquanto, a peça não tem expectativas de retornar em cartaz, mas acompanhe a página oficial no Instagram para ficar por dentro de qualquer novidade. E você, conhece a obra de Arthur Miller? Comente com a gente no Instagram e em suas redes sociais.

