A controversa vida de Jerzy Kosiński

Jerzy Kosiński foi controverso em vida e deixou uma obra poderosa que ressoa até os dias atuais. Conheça a vida e a morte do autor de O Pássaro Pintado.

Os impactos da guerra chegam para todos, e parecem atingir com ainda mais força quem menos tem a ver com o conflito. Para uma criança todo esse caos pode ser ainda mais incompreensível e um contexto propício para uma espécie de amadurecimento forçado, no qual a maldade se manifesta além dos campos de batalha

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O Pássaro Pintado conta a história de um garoto que passou pelos terrores da Segunda Guerra Mundial no Leste Europeu. Publicado em 1965, o livro de Jerzy Kosiński se mescla à história do próprio autor em diversos aspectos. Porém, sua biografia nunca foi necessariamente um livro aberto.

Batizado de Józef Lewinkopf, Kosiński nasceu em 1933 na Polônia, um país que em pouco tempo seria palco dos conflitos, da miséria e da diáspora causados pela Segunda Guerra. O nome falso foi ideia do pai, para ajudar a família a disfarçar suas origens judias, evitando a perseguição nazista. Kosiński conseguiu um certificado de batismo falso, concedido por um padre católico.

A família Lewinkopf sobreviveu ao holocausto graças à ajuda de moradores do interior que socorriam poloneses judeus, um grupo que corria muito risco no contexto da Guerra. Eles foram predominantemente protegidos por famílias e clérigos católicos, o que fez com que Jerzy até atuasse como coroinha por um tempo.

Ao fim da guerra, Kosiński e sua família se mudaram novamente dentro da Polônia. Aos 22 anos ele se formou em história e sociologia na Universidade de Lódz. O futuro escritor ainda trabalhou como assistente de professor na Academia Polonesa de Ciências e serviu como franco-atirador no exército polonês.

A vida nos Estados Unidos e a carreira de escritor

Para poder imigrar nos Estados Unidos em 1957, Jerzy Kosiński criou uma fundação falsa, que supostamente estaria lhe bancando. Mais tarde, ele alegou que forjou cartas de autoridades comunistas influentes para lhe garantir um retorno seguro à Polônia — tais documentos eram exigidos de qualquer pessoa que deixasse o país naquela época.

A princípio, o “sonho americano” de Kosiński envolveu diversos empregos aleatórios, inclusive como caminhoneiro. De alguma forma, ele conseguiu se formar na Universidade de Columbia e em 1962 se casou com uma herdeira da indústria metalúrgica chamada Mary Hayward Weir. Em 1965 Jerzy Kosiński conseguiu a cidadania norte-americana. O casal se divorciou após quatro anos de matrimônio.

Kosinski conseguiu fundos da Guggenheim Fellowship em 1967 e da Ford Foundation em 1968. Em 1970 o autor ganhou o prêmio de literatura da American Academy of Arts and Letters. Todos esses recursos permitiram que ele escrevesse um romance político de não ficção que lhe abriu portas no mercado literário. Além disso, ele lecionou em universidades como Yale e Princeton.

Ao longo dos anos 1960, Kosinski se tornou famoso no circuito literário de Manhattan pelas desconcertantes histórias que ele contava sobre as brutalidades que havia sofrido durante a guerra. Segundo sua narrativa, ele havia sido abandonado pelos pais aos 6 anos de idade, o que o levou a peregrinar sozinho pelo interior da Polônia, testemunhando estupros, assassinatos e incesto — além de temer constantemente pela própria vida.

As histórias de Kosiński acabaram lhe rendendo o livro O Pássaro Pintado, publicado em 1965. Por um bom tempo a obra foi considerada uma das mais importantes dentro da literatura do holocausto. 

O título se refere a um ato cruel: um mendigo com habilidade em capturar pássaros pinta suas presas antes de liberá-las de volta à natureza. Porém, quando as aves retornam ao seu habitat, a sua revoada não as reconhece, e então brutalmente atacam o pássaro pintado.

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Traumas fictícios e a verdadeira identidade do Pássaro Pintado

Não foi apenas a discrepância entre a biografia de Kosiński e os eventos narrados em O Pássaro Pintado que a tornaram uma obra polêmica. Logo após sua publicação, o governo polonês acusou a obra de ser antipolonesa, principalmente após a campanha antissemita do governo de 1968. 

O livro foi banido da Polônia até o fim do regime comunista em 1989. Quando sua venda finalmente foi liberada, os poloneses chegaram a esperar oito horas na fila para conseguir uma cópia autografada da obra. Embora a crítica polonesa reconheça a importância de O Pássaro Pintado, a obra no país tem sido encarada majoritariamente como um trabalho de ficção

No entanto, há indícios de que a ideia de vender a história como autobiográfica não tenha partido de Kosiński, e sim de editores e críticos que queriam posicioná-lo como um porta-voz de toda uma geração assombrada pelo holocausto e que conheceu de perto os terrores da guerra. Kosiński falou sobre isso na introdução da reimpressão de 1976 da obra.

Mas as polêmicas em torno do livro não param por aqui. No fim do século XX escritores, críticos e estudiosos levantaram a possibilidade de O Pássaro Pintado também ser um plágio. As acusações dão conta de que Kosiński teria se inspirado em obras anteriores à guerra, desconhecidas dos leitores de língua inglesa. 

De acordo com as acusações, nem a autoria seria completamente dele, uma vez que Kosinski ainda não era fluente em inglês à época da publicação. O autor teria elaborado seus manuscritos em polonês, que depois foram escritos por ghost writers em inglês — o que tais críticos justificam apontando diferenças de estilo entre O Pássaro Pintado e outras obras de Jerzy Kosiński.

Alguns escritores e editores assistentes chegaram a se manifestar, afirmando que teriam escrito trechos do livro, sem receber créditos, prestígio e em alguns casos até sem receber pagamento. O escritor negou todas essas acusações, mas sua reputação ficou inevitavelmente manchada, tais quais os pássaros liberados pelo mendigo na natureza.

Até o fim de sua vida, Jerzy Kosiński sofreu com diferentes doenças em meio às acusações publicadas na mídia. Antes de chegar aos 60 anos, ele sofria de arritmia cardíaca e diversos sintomas associados à exaustão. O escritor cometeu suicídio em 1991 deixando um bilhete que dizia: “Eu vou me colocar pra dormir agora por um período um pouco mais longo que o normal. Chamem de eternidade”.

Após uma infância marcada por mentiras que serviram para protegê-lo, a verdadeira vida de Kosiński permanece um enigma. Em diferentes aspectos ele era uma metáfora ao pássaro pintado, disfarçado e jogado às atrocidades do mundo. Porém, muitos o consideram também o próprio pintor, entregando uma realidade alterada, pronta para ser estraçalhada por aqueles que não a compreendem.

O relato exato de O Pássaro Pintado pode ter sua boa carga de ficção, mas permanece uma importante obra que retrata e relembra um período muito real da história da humanidade: o holocausto, a guerra e as atrocidades cometidas contra pessoas inocentes. Pássaros pintados continuam a ser massacrados em diferentes cantos do mundo, fazendo com que a metáfora de Kosiński permaneça assustadoramente atual.

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Com uma narrativa explícita, violenta e desoladora, O Pássaro Pintado é um resumo cruel dos dias terríveis em que parte da Europa esteve dominada pela ideologia nazista, e oferece um retrato bastante fiel do preconceito, do espírito humano alquebrado diante da brutalidade e da ignorância. O livro está em pré-venda no site oficial da DarkSide Books.

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Renunciei à vida mundana para me dedicar às artes da trevas. No meu cálice nunca falta vinho ungido e protejo minha casa com gatos que afastam os espíritos traiçoeiros. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.