Bruxas no folk horror: heroínas ou vilãs?

O folk horror foge das visões estereotipadas e unilaterais que existiam das bruxas e mostra que ainda existem muitas histórias para contar.

Quando alguém fala a palavra “bruxa” pode ser que a sua primeira associação seja a de uma mulher velha, feia, nariguda e de risada estridente. Ela provavelmente está vestindo alguma túnica preta e preparando alguma poção em seu caldeirão, na companhia de seu gato preto.

Crescemos com esta imagem de bruxas graças aos contos de fadas como Branca de Neve e os Sete Anões ou João e Maria. Nestas histórias elas sempre são as grandes vilãs, uma verdadeira ameaça à crianças ou à belas donzelas. Porém, se revisitarmos quem foram as bruxas de verdade, elas estavam mais para uma ameaça ao patriarcado e ao domínio do cristianismo.

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Se formos explorar outros gêneros da ficção, como o terror e, mais especificamente o folk horror, o papel das bruxas nem sempre é claro. Elas não seguem mais os arquétipos bem definidos dos contos de fadas e são personagens mais profundas, que podem envolver bandeiras como feminismo e uma forma de subverter símbolos misóginos.

Em seu artigo Witches, ‘bitches’ or feminist trailblazers?, Chloé Germaine Buckley se debruça sobre estas enigmáticas mulheres e como elas têm sido representadas nas obras de folk horror. Justamente por sua ligação mais forte à natureza e aos instintos humanos mais primitivos, este subgênero lida constantemente com seres místicos da floresta – em muitos casos, as próprias bruxas.

Bruxas no cinema de terror x Bruxas no folk horror

Apesar de outras formas de terror também adotarem a figura da bruxa em sua narrativa, é o folk horror que melhor aproveita sua ambiguidade. Em partes, isso é feito graças a sua turbulenta relação com os discursos da contracultura

Com uma imagem associada a uma monstruosidade incontestável, capaz de atos desumanos, estas mulheres foram representadas como essencialmente más e vilanescas em várias produções de terror do século 20, como Suspiria, A Maldição do Demônio, A Mansão do Inferno e Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio

Histórias góticas e de terror, no entanto, sempre ignoraram a contribuição política que estas mulheres podem trazer. Se considerarmos as históricas caças às bruxas e o estilo de vida destas mulheres, em negação às imposições de sociedades machistas e cristãs, podemos encarar as bruxas como símbolos de resistência feminista. Caças às bruxas podem ser interpretadas como perseguições a mulheres de forma geral.

O cinema de terror, em seus primórdios, sempre preferiu evocar as facetas do estereótipo dos contos de fadas: abdução e assassinato de crianças, uso de venenos e poções para matar adultos, habilidade de entrar em casas através de portas e janelas fechadas, sugando sangue ou comendo a carne de crianças, voar em vassouras e manter demônios em forma de animais. O mais fascinante é que estas alegações eram utilizadas em julgamentos de verdade na Idade Média, em que mulheres eram condenadas pelos mais variados absurdos.

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No cinema, o ressurgimento de uma ameaça de “tempos antigos” é um elemento-chave para o folk horror. O subgênero trabalha a combinação de paisagens distantes da civilização e um sistema alternativo de crenças ou códigos morais. São justamente estas crenças que entram em conflito e levantam questionamentos em relação a sistemas misóginos, frequentemente considerados “certos” pela sociedade. 

Em A Bruxa, de Robert Eggers, por exemplo, o mal surge da paisagem desolada da Nova Inglaterra. Das florestas misteriosas que os peregrinos puritanos não conseguem controlar. Este apelo à mitologia puritana marca uma divisão dos gêneros, em que os homens seriam defendidos pelas crenças cristãs e as mulheres, e o corpo feminino, representam uma ameaça grotesca, percebida de forma misógina.

Este medo e repulsa ao corpo feminino também pode ser encontrado em outras obras de terror, como é o caso de Carrie, a Estranha. O filme conecta o sangue menstrual à possessão de poderes sobrenaturais. A presença do sangue em filmes de terror de forma geral já tem o intuito de causar repulsa no espectador, mas neste filme a conexão com o corpo e a fertilidade feminina fica escancarada, colocando as mulheres na posição de monstros incontroláveis.

De forma geral, a representação das bruxas como velhas monstruosas em muitos momentos é uma manobra das crenças ocidentais e cristãs de deslegitimar o poder das mulheres. Neste contexto, bruxas são incontroláveis e suas forças vêm de fontes maculadas, direcionadas de forma desleal contra o “cidadão de bem”. Como se os “poderes” dos homens fossem obtidos de forma justa e pacífica.

Folk horror e a ambiguidade das bruxas

Muitos filmes de folk horror focam nas bruxas como uma consequência do interesse por superstições arcaicas. Os três filmes pioneiros do subgênero, O Caçador de Bruxas, O Estigma de Satanás e O Homem de Palha envolvem as crenças antigas sobre bruxas. E desde o início elas não eram vistas como personagens de fácil definição.

Por exemplo, em 1971 O Homem de Palha apostou na sensibilidade dos espectadores, fossem eles progressistas ou reacionários. O filme aborda o ressurgimento de um culto antigo de bruxaria em uma ilha remota na Escócia dos dias de hoje — o “hoje”, no caso, seriam os anos 1970. O herói masculino, um policial chamado Howie (Edward Woodward), é atraído para a ilha para investigar o suposto desaparecimento de uma garota. Porém, ele se vê em meio a uma série de jogos dos membros do culto, que preparam o policial para um sacrifício que os ajudaria na colheita. Aqui não há uma derrota clara do “mal” e, ao mesmo tempo, os habitantes da ilha são altamente carismáticos e podem facilmente trazer o espectador para o “seu lado”. 

Apesar de aparentemente declarar a derrota do cristianismo por uma contracultura pagã, estudiosos apresentam opiniões divergentes quanto à mensagem do filme. Ao mesmo tempo em que o longa apresenta uma visão sensacionalista do que seria um culto pagão, também dá um puxão de orelha na intolerância cristã.

Em relação ao feminismo, a mensagem de O Homem de Palha permanece um mistério. Apesar de não serem claramente “bruxas”, as mulheres relevantes para a trama evocam noções divergentes do que a cultura popular entende como bruxaria. Enquanto algumas análises apontam que as personagens oferecem pontos de identificação com a wicca, facilmente reconhecidas pelas audiências femininas, alguns críticos alegam que o filme zomba de noções arcaicas de feminismo e coloca os homens no papel de vítimas. Além disso, o corpo feminino é utilizado como símbolo da celebração sexual da contracultura, em conflito com o medo patriarcal de vê-lo como algo a ser temido.

Passadas algumas décadas, A Bruxa é um filme que volta a abordar esta ambiguidade, e de diversas formas. A obra está mais disposta a levantar questionamentos do público do que a respondê-los. Por exemplo, são os puritanos que convidam o mal para sua casa através da repressão psicológica de suas crenças ou eles são apenas vítimas de ataques de forças sobrenaturais? Thomasin se torna uma bruxa no final ou a sequência seria apenas uma ilusão dela em que seu desejo se torna realidade? 

O próprio feminismo em A Bruxa não tem um papel tão claro. Ao mesmo tempo em que a trama pode abordá-lo em um aspecto mais positivo, envolvendo o empoderamento de sua protagonista, sua libertação do patriarcado e o controle sobre o próprio corpo, também apresenta a bruxa como uma figura perigosa e satânica

Embebido em bruxaria e misticismo, o folk horror foge das visões estereotipadas e unilaterais que existiam das bruxas. O subgênero questiona a misoginia e as imposições do cristianismo ao mesmo tempo em que não nega os aspectos nefastos destas personagens. Nem vítimas e nem demônios, estas mulheres mostram que ainda há muito para ser descoberto sobre elas, em muitas histórias horripilantes que ainda estão por vir.

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Renunciei à vida mundana para me dedicar às artes da trevas. No meu cálice nunca falta vinho ungido e protejo minha casa com gatos que afastam os espíritos traiçoeiros. MACABRA™ - FEAR IS NATURAL.