Por Camila Fernandes, tradutora de Invasores de Corpos
Se você bate cartão na internet há alguns anos, com certeza já topou com o meme do Donald Sutherland acusador.
Sou dessas que não sabiam de que filme essa cena vinha. Descobri isso depois de receber da DarkSide Books a encomenda de traduzir Invasores de Corpos, de Jack Finney, e, obviamente, pesquisar a respeito da obra. O livro, publicado em 1955, deve ser um dos romances do gênero mais adaptados para o cinema. São nada menos que quatro filmes diretamente inspirados nele: Vampiros de Almas (1956), Os Invasores de Corpos (1978), Os Invasores de Corpos — A Invasão Continua (1993) e Invasores (2007).
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Aqui, vou me concentrar no livro e nos dois primeiros filmes, considerados clássicos do cinema de horror e ficção científica — com o mínimo possível de spoilers, pra não estragar o seu rolê.
Invasores de Corpos — O livro
Jack Finney, 1955 // Miles Bennel é um jovem médico na cidadezinha de Santa Mira, Califórnia. Becky Driscoll, seu amor da juventude, acaba de voltar à cidade e pede que Miles ajude sua prima Wilma: a mulher está convencida de que o próprio tio, que a criou como filha, foi substituído por um impostor idêntico. Logo, outros casos dessa aparente alucinação surgem pela cidade e a desconfiança se torna a regra: estamos mesmo cercados de falsários ou somos vítimas de um delírio coletivo?
O livro é narrado em primeira pessoa por Miles, que o tempera com um senso de humor peculiar e, muitas vezes, inoportuno:
Eu bebo o dia inteiro, como todo mundo sabe. Principalmente em dia de cirurgia. E todos os pacientes têm que beber comigo… que tal?
Apesar dos momentos de chiste e leveza, o personagem-narrador nos guia por uma trama em que impera o suspense. Numa cidadezinha onde todo mundo se conhece, é fácil reconhecer quando alguma coisa se desloca da rotina, mas muito difícil entender como e por quê. Ao conversar com o psiquiatra Mannie Kaufman e outros médicos, ele logo entende que o problema está aumentando — como uma doença contagiosa ou uma infestação de ervas daninhas.
A mente humana é uma coisa estranha e maravilhosa, mas não sei se um dia desvendará a si mesma. Todo o resto, talvez — do átomo ao universo —, exceto a si mesma.
A identificação de Miles com Becky é imediata, não só pela nostalgia do namoro adolescente, mas porque ambos são divorciados e não têm exatamente a vida que sonharam. Becky será sua parceira constante na trama, alguém que ele quer proteger, mas que também é capaz de surpreendê-lo enquanto os dois pulam de uma arapuca para a outra em busca de socorro.
O livro oferece debates sobre o propósito da vida no universo e sobre individualidade versus conformidade, com argumentos interessantes. ***Alerta de spoiler*** Aprendemos que os invasores são extraterrestres inteligentes; o que lhes falta é emoção, levando a uma ausência geral de individualidade e impulso criativo. São capazes de imitar muito bem, mas não de ser, nem de modificar a si mesmos e ao mundo em torno deles, nem de criar novos seres — só falsificações. Essas diferenças serão fundamentais no enfrentamento entre humanos e invasores. ***Fim do spoiler***
Muita coisa mudou dos anos 1950 para cá; como leitora e tradutora, pude perceber isso por meio de detalhes saborosos. Há um momento em que Becky e Miles compram Coca-Cola numa farmácia (hein?) e outro em que Miles elogia a sala principal da biblioteca da cidade, porque lá dentro pode-se fumar (oi?). E, numa época sem telefone celular nem bipe (alguém se lembra dos bipes?), ao sair do consultório, o médico precisa avisar à telefonista onde encontrá-lo em caso de emergência, o que de fato acontece: ele é interrompido na metade de uma sessão de cinema, quando o gerente o chama para atender seu amigo Jack Belicec.
***Alerta de spoiler*** São Jack e sua mulher, Teddy, que apontam o primeiro cadáver — uma versão pavorosamente inacabada de Jack. Mas será que podemos chamar de cadáver um corpo que talvez nunca tenha vivido? O livro traz descrições vívidas desse achado, assim como das primeiras “vagens”, ou pods, como são descritos os invólucros estranhos de aparência vegetal que dão origem aos corpos dos impostores. ***Fim do spoiler***
Então, vamos aos filmes.
Vampiros de Almas
Invasion of the Body Snatchers, 1956 // Com roteiro de Daniel Mainwaring e direção de Don Siegel, Este filme começa perto do fim: Miles Bennell (Kevin McCarthy), médico, está sob custódia da polícia num hospital, onde rememora os acontecimentos que o levaram até lá e pede ação urgente das autoridades. Mas como fazê-los acreditar na história absurda que ele conta?
O filme de 1956 é bem fiel ao livro, desde os nomes, empregos e funções dos personagens na trama até a presença da narração em primeira pessoa, o que nos dá acesso aos pensamentos dele. Becky (Dana Wynter), depois de anos fora da cidade, procura Miles para orientar a prima, que crê que seu tio é um impostor.
Aqui, a leveza fica por conta do clima de romance renovado entre o par, evidenciado pela linguagem corporal e pela trilha sonora. Mas, como no livro, logo a certeza da rotina dá lugar à desconfiança generalizada quando o psiquiatra Dan Kaufman (Larry Gates) relata casos da mesma “histeria em massa” e seus amigos Jack e Teddy Belicec (King Donovan e Carolyn Jones) apresentam provas. O suspense é realçado pela iluminação dramática das cenas internas e pela imagem em preto e branco numa era em que já havia filmes coloridos, remetendo ao cinema noir. Os efeitos especiais físicos são muito bons para a época.
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Invasores de Corpos
Invasion of the Body Snatchers, 1978 // Com roteiro de W. D. Richter e direção de Philip Kaufman, o filme já começa com ótimos efeitos físicos que mostram uma espécie de forma larval extraterrestre atravessando o espaço até chegar à Terra, onde dá origem a plantas perigosas. Aqui, a história não se passa numa cidadezinha pacata, mas na frenética São Francisco, com suas ladeiras e casas do século XIX.
Considerado um remake do filme de 1956, Invasores é, apesar disso, muito diferente dele. Aqui, Matthew Bennell (Donald Sutherland) é fiscal da vigilância sanitária e, em sua primeira cena, confronta o dono de um restaurante fino, porém imundo. Outras coisas mudaram nesses 22 anos: sua parceira de trama não é uma jovem presumivelmente sem profissão que mora com o pai, mas a técnica em laboratório Elizabeth Driscoll (Brooke Adams), que, curiosa, leva um exemplar da tal planta exótica para casa e vê seu namorado Geoffrey Howell (Art Hindle) passar a agir de modo suspeito.
O clima de paranoia e pânico não demora a se instalar. Mais e mais pessoas começam a relatar a impressão de que seus entes queridos foram substituídos por impostores fisicamente idênticos, mas de olhar vazio, enquanto vemos, o tempo todo, caminhões de lixo triturando um material estranho cuja natureza podemos presumir.
Neste filme, a dinâmica entre os personagens é mais interessante: Matthew se interessa por Elizabeth, mas ela é comprometida; seu amigo psiquiatra, aqui chamado David Kibner (e vivido pelo inesquecível Leonard Nimoy) é autor de best-sellers e detestado por Jack Belicec (Jeff Goldblum), o escritor frustrado; seus conflitos enriquecem as interações. O dr. Kibner argumenta que o comportamento alterado das pessoas é mero sinal dos tempos, em que vivemos relacionamentos-relâmpagos e não conhecemos de verdade nossos pares. Há momentos de bate-boca e falas expositivas, mas o filme também se expressa por meio de silêncios bem situados.
Quem mata a charada da forma de contágio são as mulheres, Elizabeth e Nancy Belicec (Veronica Cartwright), massagista e mulher de Jack. Curiosamente, são também as mulheres que percebem primeiro a mudança no comportamento das pessoas próximas — e os homens tentam convencê-las de que estão enganadas.
“Durma… para renascer num mundo sem medo nem ódio!”, diz o cartaz do filme. O problema é o preço de viver nesse mundo.
Curiosidades
Kevin McCarthy e Don Siegel, o ator principal e o diretor do filme de 1956, fazem pontas na versão de 1978.
Vampiros de Almas foi apontado como alegoria tanto da paranoia anticomunista no pós-guerra americano, quando várias pessoas foram perseguidas pelo senador Joseph McCarthy, sem provas, sob a acusação de traição e subversão, quanto da ideia de perda da autonomia sob um sistema como o da URSS. Siegel negou ter tentado expressar um posicionamento político por meio do filme. O diretor, além disso, não gostou do começo e do fim que o estúdio impôs, modificando o roteiro original. O filme ainda deu origem ao termo pod person (“pessoa [saída da] da vagem”), no plural pod people, alguém que age de modo mecânico e conformista.
Tanto o livro quanto os dois filmes têm finais diferentes. Então, esta é a minha recomendação: se ainda não viu nenhum dos filmes, leia o livro primeiro e assista aos filmes na ordem; se já viu os filmes, ora, leia o livro mesmo assim. Cada obra tem sua pegada e vai te surpreender.
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